Entre a morte e a vida

Maio Laranja serve para nos conscientizar e combater a violência contra crianças e adolescentes no Brasil, mais especificamente casos de abuso e exploração sexual. Nesse contexto, vale a pena pensar sobre o que está em jogo quando falamos sobre crianças em situação de risco e vulnerabilidade social. Como demonstram as estatísticas de violência contra a infância brasileira, estamos lidando com uma questão de vida e morte. Ainda que para muita gente isso pareça muito dramático ou exagerado, não é. Ontem (19/05), por exemplo, vimos, mais uma vez, a morte de um garoto de 14 anos, baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro. João Pedro estava em casa, brincando! Não estava envolvido com o tráfico, era evangélico, e a morte o tomou ou foi lançada contra ele por diversos fatores que nada têm a ver com suas decisões na vida. Nesse devocional, o leitor poderá entender que quando falamos de situação de risco e vulnerabilidade social estamos falando de morte e vida, assim como podemos ver na Bíblia.

Vida e morte, na Bíblia e hoje, não podem ser medidas pelos batimentos cardíacos ou a falta deles. É possível estar vivo e ainda experimentar a morte. É aqui que entra a experiência e a situação de risco e vulnerabilidade social. No portfólio da ABBA, que você pode acessar aqui, desenvolvemos uma descrição dessa condição e eu vou resumir algumas coisas aqui. Para muitos é somente uma questão de pobreza e vida nas favelas, mas é muito mais do que isso.

As duas perguntas que precisamos fazer são: Vulnerável a quê? Risco de quê? A vulnerabilidade social significa uma condição de susceptibilidade latente ao ambiente social em que se vive. É claro que todos nós somos susceptíveis ao nosso meio social. Existe uma diferença, porém, entre meios que impõem maiores dificuldades para superá-los e, meios menos desafiadores. Para piorar a situação, meios mais desafiadores tendem a ser mais inóspitos para o desenvolvimento humano. Em outras palavras, o meio social afeta o desenvolvimento de nossos recursos emocionais e psicológicos para adquirirmos as capacidades necessárias para superar os desafios impostos por ele. Esses desafios têm a ver com escassez de recursos materiais, mas também com um meio social que impõe escassez de recursos internos. Essa é uma situação de vulnerabilidade social. Quem está em tal condição tem pouquíssimas oportunidades e escassas possibilidades de adquirir as habilidades necessárias para se ter uma vida diferente daquela que se vive no meio em que se está inserido.

Qual seria o risco, então? Trata-se do risco de experimentar situações que as coloquem mais próximas do colapso financeiro, familiar, emocional e psicológico, podendo chegar ao ponto do risco de morte. Esse colapso se experimenta em doenças, marginalização, drogadição, desestrutura familiar, fome, institucionalização, violência, etc. Num espectro, o risco pode variar entre uma condição que limita seriamente o pleno desenvolvimento humano até o ponto em que se tem o próprio risco de morte. Dentro desse espectro, o que se coloca entre a pessoa e a experiência desse colapso a perda de emprego, um acidente doméstico, uma gravidez inesperada, um divórcio, etc. Muitas vezes trata-se de uma situação que poderia ser superada sem grandes dificuldades caso houvesse mais recursos externos e internos. Para alguns, a vulnerabilidade é profunda o suficiente para que apenas um imprevisto os leve a experimentar os riscos citados acima. Para muitos, a morte cerceia sua vida de tal forma que basta uma pequena mudança para ceifá-la de vez. Ou, como no caso de João Pedro, basta viver em certo lugar, para que a morte atravessa sua porta e o atinja.

Tudo isso encontra algumas correspondências interessantes com a visão da Bíblia sobre Deus, a criação, a vida e a morte. O espectro entre situações que limitam o pleno desenvolvimento humano até situações de risco de morte poderia mudar para uma linguagem mais bíblica: vida, de um lado, e morte do outro. Deus é um Deus de vida, que cria um ambiente que gera e sustenta a vida, enquanto a ausência de Deus e suas ações criam um ambiente incapaz de gerar e sustentar a vida, portanto, um lugar de morte. Isso fica bem claro em Gênesis 1, que começa com um estado de vazio e deformidade, ou seja, um ambiente sem vida, descrito pela expressão hebraica תֹהוּ וָבֹהוּ (tohu vabohu), e é concluída com um estado vibrante com vida por todo lado.

O estado de morte, na Bíblia, não é necessariamente uma condição após o ser vivente dar seu último suspiro. Na verdade, é possível viver em estado de morte. Uma palavra importante no Antigo Testamento para o lugar de morte é שְׁאוֹל (sheol). Vejam Salmos 30.3: “Oh, SENHOR, você fez subir minha vida do Sheol, me conservou vivo para não descer à cova”. Ou, Salmos 88.3: “Minha vida é repleta de males, meu ser toca no Sheol”. Ou Salmos 116.3: “As armadilhas da morte me cercam, as angústias do Sheol se apoderam de mim”. Essas condições de vida descritas pela presença iminente do Sheol é uma ameaça à vida. O contexto de tais condições, geralmente, é de desordem social, violência e escassez de recursos. A presença do Sheol, portanto, é uma situação de risco e vulnerabilidade social.

Outra palavra hebraica importante aqui é מוֹת /מָוֶת (motmavet). Trata-se do termo comum para morte. No entanto, a morte não é meramente um estado, pois ela tem certa personalidade. Tanto é que  מוֹת (mot) é um termo que se refere a um deus da morte e do submundo nas mitologias do antigo Oriente Próximo. Para entender a morte como personalidade na tradição bíblica, temos um exemplo interessante em Jeremias 9.21: “Pois subiu [obviamente vindo do submundo] a morte [מָוֶת] pelas nossas janelas, entrando em nossas cidades, e arrancou crianças das ruas e jovens da praça”. Esse texto é bastante significativo por dois motivos. O primeiro é que a morte tem caráter ativo. Ela penetra a esfera da vida humana, especificamente a sociedade, a fim de arrancar a vida de pessoas e levá-las para o seu domínio. O segundo é que Jeremias destaca crianças e jovens como aqueles que primeiro são arrancados pela morte. Crianças e jovens, aqui, são um grupo de maior risco e vulnerabilidade social, algo que continua sendo a realidade em nosso contexto, como a morte de João Pedro deixa claro. Mais interessante ainda, é que o texto de Jeremias fala da morte entrando por nossas janelas. Em nosso contexto, a morte que alcança nossas crianças e adolescentes é uma ameaça que, na maioria dos casos, vem de dentro de suas próprias casas. A violência sofrida por crianças e adolescentes brasileiros é, na vasta maioria dos casos, perpetuada por seus familiares e conhecidos, no ambiente do lar. Mesmo quando isso não acontece, como no caso de João Pedro que foi baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro, estar em casa não significa ter segurança alguma.

Por outro lado, vamos ver como o Evangelho de João faz uso do termo vida. Um texto muito conhecido é João 10.10: “Eu vim para lhes dar vida, uma vida plena, que satisfaz” (NVT). Essa “vida abundante” e “vida eterna”, no Evangelho de João, está atrelada à revelação de quem Jesus é. O modo de revelação da identidade de Jesus como Filho e Deus encarnado se dá por vários episódios em que Jesus oferece suprimentos materiais em situações da necessidade humana: vinho (2.1-11), água (4.4-42) e pão (6.1-71). Mais interessante é que a oferta de elementos materiais por Jesus é mais do que isso. O próprio Jesus é “a água VIVA”, o “pão da VIDA”. Jesus oferece esses elementos materiais, mas ele mesmo é a dádiva oferecida. Há uma convergência aqui entre a realidade humana, material, física, e a realidade divina, espiritual. A vida é oferecida pelos elementos materiais que saciam as necessidades humanas, ou seja, aquilo que, de fato, sustenta o corpo humano. Mas como essa oferta é feita pela graça de Deus, no serviço de Jesus como a própria dádiva oferecida, esses elementos também resultam em vida abundante. A materialidade deixa de ser mera materialidade diante de quem a oferece como expressão da graça divina na comunhão com aquele que se revela como o próprio Deus. E João nos diz que todos aqueles que desfrutam desses elementos, recebendo a própria dádiva, que é Jesus, recebem o direito de se tornarem filhos de Deus (Jo 1.12). Jesus, a encarnação de Deus, é o Deus que dá vida, mesmo pelo simples ato de saciar as necessidades humanas daqueles que mais precisam.

Milhões de brasileiros, muitos deles crianças e adolescentes, vivem em situação de risco e vulnerabilidade social. Para eles, a morte é uma realidade diária, seja pela violência física e sexual infligida contra eles, ou pela escassez de recursos materiais e recursos internos. A morte quer arrancar suas vidas e o Sheol parece ser o ambiente em que vivem, como na descrição do salmista. Isso acontece quando um de seus conhecidos ou amigos é baleado, como aconteceu com o João Pedro; ou nas marcas de feridas purulentas que muitos carregam por falta de saneamento básico; ou no prato vazio, literalmente, ou de nutrientes, quando só têm miojo para comer; ou no córrego correndo como uma torrente ao lado de seu barraco; ou no soco que sua mãe leva do namorado; ou quando seu pai ou mãe os espancam; ou quando algum familiar ou conhecido os abusa sexualmente; ou quando o patrão atrasa o salário de seus pais; ou quando são deixados com vizinhos, ainda bebês, porque a mãe foi usar droga na rua; ou por ter sido simplesmente abandonado no hospital por sua mãe. Para todos esses, a igreja tem muito a oferecer. Como corpo de Cristo, podemos oferecer os recursos materiais e a proteção física que essas pessoas precisam para suprir suas necessidades, para dar-lhes o que precisam para viver. Mas como corpo de Cristo, devemos fazê-lo num ambiente de real encontro, de real revelação da dádiva divina, o próprio Jesus, que se manifesta nesse ato, nessa oferta, concedendo a essas pessoas a possibilidade de o receberem nesses elementos e terem vida abundante e serem chamados filhos e filhas de Deus.

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