Com muita razão, a maioria de nós teme nos contaminarmos. Em circunstâncias como a que vivemos atualmente, nosso senso de que há perigos invisíveis se amplifica. Ainda que nós não estejamos acostumados com esse tipo de perigo num âmbito global, a história da humanidade é marcada por doenças contagiosas que ameaçavam a existência de comunidades, pequenas e grandes. É essa ameaça à vida que deu a esses inimigos invisíveis, mas muitas vezes com sintomas bem visíveis, o potencial de adentrar o imaginário e o vocabulário religioso. Contaminação, doenças e impurezas, como ameaça à vida de indivíduos e de comunidades, ganharam um novo significado. Para nós, cristãos, somos levados a pensar no livro de Levítico e todas as suas orientações sobre contaminação e impurezas. No antigo Israel, esse conceito de contaminação e impureza abrangia tanto questões de saúde, como doenças e fluxos corporais, quanto questões físicas e morais. Por exemplo, animais podiam ser considerados “puros” ou “impuros”, e o comportamento das pessoas podia gerar impureza e causar contaminação de objetos sagrados. Infelizmente, essa forma de entender contaminação e impurezas podia ser aplicada para questões étnicas. O Novo Testamento está repleto de polêmicas sobre isso no início do movimento de seguidores de Jesus. Dentre essas polêmicas, a mais notória é a se judeus e gentios podiam ter comunhão sem se preocupar com a contaminação de impurezas? Tiago, que era judeu e cristão, coloca de ponta-cabeça toda essa discussão. Sua forma de entender contaminação e impureza é muito significativa para todos os tempos. Contudo, como nossas sensibilidades ao assunto estão afloradas diante de uma pandemia, a leitura da carta de Tiago é ainda mais significativa hoje.
“Deus, o pai, considera como religião pura e imaculada visitar órfãos e viúvas em suas aflições, mantendo-se incontaminado pelo mundo” (Tiago 1.27).
No primeiro capítulo da carta de Tiago, há uma compilação de ditados de sabedoria. Esse capítulo introduz diversos assuntos que Tiago abordará no decorrer dos próximos 4 capítulos de sua carta. Ao concluir o primeiro capítulo com o versículo 27, Tiago converge tudo o que veio antes, e o que virá depois, nessa breve afirmação sobre “a religião”. Portanto, temos neste versículo o resumo de toda a carta e da teologia de Tiago. Como um bom sábio judeu, Tiago tem uma excelente capacidade de criar provérbios curtos em conteúdo e densos em significado.
O ponto de partida de Tiago é Deus, mas não como um conceito, e sim como uma pessoa de identidade específica: o pai. O fundamento dessa identidade, pelo que é possível observar na carta de Tiago, é que Deus é um generoso doador (ver Tiago 1.5; 4.6). É assim, por exemplo, que a paternidade de Deus é explicada em Tiago 1.17: “Toda dádiva que é boa e perfeita vem do alto, do pai que criou as luzes no céu”. Assim, a paternidade de Deus está em sua disposição de cuidar de toda a criação doando bons presentes a todos. Exatamente por se importar com o bem de toda a criação e de todos, Deus, o pai, tem um cuidado especial por aqueles que, na sociedade, são destituídos de desfrutar dessas boas dádivas divinas na criação. Por isso, tanto na carta de Tiago, quanto em sua fonte teológica proveniente do Antigo Testamento, a paternidade de Deus está vinculada ao modo como Deus cuida de órfãos e viúvas (por exemplo, Oséias 14.3; Salmos 10.14; Salmos 68.5-6). É a paternidade de Deus, que cuida de toda a criação dispensando dádivas a todos e de seu cuidado especial pelos mais vulneráveis da sociedade, que explica uma visão importante de Tiago. Para ele, Deus escolheu os pobres do mundo para serem ricos na fé e serem herdeiros do reino que Deus prometeu aos que o amam (ver Tiago 2.5). Assim, vemos que órfãos e viúvas representam o conjunto de pessoas e grupos sociais em situação de grande vulnerabilidade e necessidade.
Tendo esse ponto de partida, podemos entender todas as outras questões do versículo: a definição da religião pura e imaculada para Deus, assim como o contraste entre Deus e a religião pura e imaculada de um lado, e o mundo do outro. Vamos começar por esse último: o mundo.
Para Tiago, o mundo não é a criação ou o lugar onde as pessoas vivem. O mundo é uma realidade em oposição a Deus. Portanto, se Deus é um pai generoso que cuida de toda a criação, especialmente os mais vulneráveis e necessitados, dispensando boas dádivas, o que seria o mundo? Em primeiro lugar, o mundo deve ser um lugar marcado pela avareza e não pela generosidade. Em segundo lugar, o mundo deve ser um lugar marcado pelo egoísmo e não pela preocupação com o todo. Em terceiro lugar, o mundo deve ser um lugar de auto-exaltação, privilégios, status e desprezo pelos mais vulneráveis. De certa forma, Tiago estabelece as características do mundo a partir do estilo de vida dos ricos afluentes. De acordo com Tiago, os ricos vivem de acordo com a sabedoria “terrena, animal e demoníaca” (Tiago 3.15), baseada em “inveja amarga e preocupações egoísticas” que levam ao orgulho (Tiago 3.14). Essa realidade do mundo, vivida por esse tipo de ricos e poderosos, é uma ameaça à vida dos mais vulneráveis. Em seus projetos avarentos e egoístas, esses ricos oprimem, condenam e até matam os pobres (ver Tiago 2.6-7; 5.1-6).
O contraste entre Deus e o mundo, como já pode ser implicado do parágrafo acima, tem um contorno personificado em Tiago. Deus tem o caráter de pai e está associado aos mais vulneráveis, enquanto o mundo tem um caráter violento associado aos ricos. Esse contorno ganha uma clareza maior quando Tiago fala sobre como as pessoas podem viver de uma forma a serem “amigos de Deus” ou “amigos do mundo”. Como é dito em Tiago 4.4, ser amigo do mundo significa estar em inimizade com Deus. Essa é uma conclusão óbvia, já que Deus e o mundo estão em oposição. Mas podemos considerar duas questões importantes aqui. Primeiro, a amizade com o mundo é inimizade com Deus, porque aqueles que vivem dessa forma desconsideram a Deus e se tornam deuses para si mesmos. Aquele famoso trecho de Tiago sobre pessoas que planejam suas viagens de negócios e bons lucros, sem considerar a vontade de Deus, é exatamente sobre isso (ver Tiago 4.13-17). Segundo, como Deus se vincula aos mais vulneráveis, qualquer ação feita contra eles se torna uma ação de inimizade a Deus. Assim, aqueles que desprezam e abusam dos vulneráveis, ao fazê-lo, demonstram que desprezam ao próprio Deus e se colocam em inimizade com ele. Dessa forma, o modo como nos relacionamos com os mais vulneráveis da sociedade é o teste decisivo para sabermos se somos amigos de Deus ou amigos do mundo.
O que, então, seria ser amigo de Deus? Aqui já podemos considerar de forma mais direta o nosso versículo, Tiago 1.27. De forma objetiva, amizade com Deus tem a ver com confiar na identidade de Deus como um pai generoso, que cuida de toda a criação, portanto, tem um cuidado especial para com os mais vulneráveis e necessitados. Tal confiança, em Tiago, é sempre ativa e nunca intelectual ou mental. Por isso, confiar nessa identidade de Deus significa viver uma vida em conformidade com essa identidade. Assim, a chave de nosso versículo está na atividade de “visitar órfãos e viúvas em suas aflições”. Como veremos agora, essa prescrição de Tiago é a chave que abrirá todo o significado de nosso versículo, assim como toda a teologia da carta de Tiago.
Quando Tiago fala em visitar, ele não está falando de uma passadinha na casa de uma pessoa para um breve período de interação. A atividade esperada é ir ao encontro de alguém com o intuito de cuidar dela, permanecendo ao seu lado, se identificando com o seu problema, e fazendo algo que traga uma solução para sua situação. Tudo isso fica muito claro quando Tiago fala em “aflições”. É uma visita em que entramos na vida do outro e tornamos o problema dela o nosso próprio problema. Não é à toa que esse tipo de visita é a forma como a vinda encarnada de Deus, em Jesus, é imaginada. Zacarias, pai de João Batista, ao se encher do Espírito Santo, diz a respeito do que estava por vir: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo” (Lucas 1.68).
Visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições, portanto, nos estabelece como amigos de Deus a partir de duas características. Como já vimos, Deus, para Tiago, é um pai generoso especialmente compromissado com o bem daquelas pessoas mais vulneráveis e necessitadas. Ao visitarmos essas pessoas, estamos fazendo aquilo que o próprio Deus faz, daí a nossa identidade como amigos de Deus. Por outro lado, ao visitarmos os órfãos e as viúvas, estamos nos identificando com eles e tomando para nós suas aflições. Tornamo-nos, portanto, humildes e dependentes da “visita” de Deus, de sua graça e generosidade. Dessa maneira, como Deus tem um compromisso especial com as pessoas mais vulneráveis e necessitadas, nós nos tornamos alvos desse compromisso especial de Deus, portanto, somos considerados amigos de Deus.
É nessa tensão entre amizade com Deus e amizade com o mundo que podemos, então, entender a tensão entre pureza e impureza estabelecida por Tiago. Tanto no Antigo Testamento, quanto no judaísmo antigo, pureza e impureza tinham aspectos rituais, mas também aspectos morais. Mesmo mantendo o caráter moral da observância ritual, o judaísmo antigo via na tensão entre pureza e impureza um requisito para certos comportamentos exclusivos, ou seja, de segregação. O aspecto mais conhecido e notório disso, que conhecemos pelo Novo Testamento, era a proibição da comunhão de mesa entre judeus e gentios. Em outros círculos religiosos, inclusive atuais, em que há uma ênfase na pureza e na impureza, tende-se a criar regras de isolamento e exclusão social, assim como tabus sobre pessoas, lugares e certas atividades. Nessa visão da realidade, o mundo e Deus são associados, literalmente, a certos lugares, pessoas e atividades. Quando Tiago fala de amizade com Deus e amizade com o mundo, assim como pureza e impureza, ele estabelece como critério um aspecto moral da identidade de Deus. Nós nos mantemos puros ao seguirmos a lógica da ação de Deus na criação. Nós nos contaminamos com o mundo ao seguirmos a lógica da ação humana no mundo. A lógica de Deus é o cuidado generoso de um pai para o bem de todos, em especial dos mais vulneráveis. A lógica do mundo é avareza, o egoísmo, a arrogância e a violência, ou seja, aquilo que leva ao benefício próprio em detrimento dos outros, criando ricos afluentes e pobres oprimidos.
O mais interessante da forma como Tiago estabelece a tensão entre pureza e impureza, é como ele cria uma relação de causalidade entre as duas. Para muitos cristãos, a forma de não se contaminar pelo mundo, ou seja, avareza, egoísmo, arrogância, etc., vem por um tipo de santificação, ou purificação, baseada em isolamento, exclusão e exercícios intelectuais e introspectivos de piedade. Tiago é muito “mão na massa” para isso. Para ele, nos mantemos incontaminados pelo mundo ao visitarmos os órfãos e as viúvas em suas aflições. Na teologia de Tiago, a santificação é identificação com Deus, ou seja, amizade com Deus. E tal amizade, como vimos, passa pela visita aos vulneráveis e necessitados, inevitavelmente. Isso faz todo o sentido, pois combate-se avareza, egoísmo e arrogância, com práticas de solidariedade, generosidade e humilhação, simples assim.
Por fim, a parte mais importante. Como entender a afirmação de Tiago de que Deus considera isso como religião pura e perfeita? O que Tiago entende por religião são atos de adoração em conformidade com quem Deus é em suas ações na criação. Existe, assim, um teor de entendimento intelectual sobre a identidade de Deus. Contudo, para Tiago, conhecemos a Deus por suas ações, e nosso conhecimento de Deus está, da mesma forma, atrelado a nossas ações. Para Tiago, a religião, a piedade, o credo, a confissão de fé e a teologia aprovados pelo Deus de Jesus Cristo, é visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições.
Essa é uma mensagem extremamente relevante em qualquer circunstância de nossa experiência humana. Mas ela tem um significado muito profundo quando a situação de vulnerabilidade e necessidade de milhões de pessoas é agravada pela contaminação de um vírus. Se Tiago está certo em sua teologia, e temos muitas razões para acreditarmos que ele esteja, então esse é um momento crucial para a religião cristã. Seremos marcados pela amizade com o mundo? Tomaremos decisões avarentas, egoístas e arrogantes nos deixando contaminar pelo mundo, mesmo que sejam decisões com aparente piedade? Ou seremos marcados pela amizade com Deus? Tomaremos decisões baseadas numa generosidade parental para o bem de todos, especialmente dos mais vulneráveis e necessitados, nos tornando humildes e dependentes da graça e generosidade de Deus? A grande pergunta que todo cristão deve responder nesse momento é a seguinte: minha religião me leva a visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições?
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