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DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL
“Os direitos humanos, no Brasil, só defende bandidos, estupradores, marginais, seqüestradores e
até corruptos”. Infelizmente, essa é a percepção de muitos brasileiros. Em pesquisa feita em 2010,
quase metade dos brasileiros associava a defesa dos direitos humanos com a “defesa de direitos de
bandidos”. Vivendo no Brasil de 2021, sabemos que essa percepção é mais notória, seja por ter se
tornado ainda mais comum ou por ter se tornado mais explícita e pública como resultado de discursos e
práticas políticas dos últimos anos. A verdade é que estamos ainda mais distantes, desde 2010, de uma
apreciação adequada do valor e do papel dos direitos humanos na construção de uma sociedade melhor
e na preservação da vida dos mais vulneráveis. Sendo esse o sentimento nacional a respeito dos direitos
humanos, não é uma grande surpresa que exista tanta resistência entre os cristãos em se associar com
a defesa dos direitos humanos.
Nessa mesma pesquisa de 2010, um terço dos brasileiros nunca tinha ouvido falar da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), formulada em 1948 pela ONU. Falta, portanto, informação e
conhecimento. Isso é verdade, também, no caso mais específico de cristãos, mesmo aqueles que estão
diretamente envolvidos em trabalhos de assistência social a grupos em risco e em vulnerabilidade social.
Ainda que cristãos não precisem fundamentar o seu trabalho na DUDH, ignorar o seu papel e o que ela
representa atualmente não é uma opção. Dentre muitos motivos, o principal deles é que, no Brasil, o
trabalho de assistência social encontra respaldo legal na Constituição Federal e no Estatuto da Criança
e do Adolescente que, em seus valores, e mesmo linguagem, é dependente da DUDH, como veremos.
Por isso, nesta edição da ABBA-PAI, queremos esclarecer qual venha a ser a relação entre a DUDH e o
trabalho de assistência social no Brasil, inclusive no contexto cristão. Faremos uma apresentação da
DUDH, sua relação com a legislação brasileira, e concluiremos com uma aplicação cristã da discussão.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Quando a vida está sob ameaça é o momento de se pensar mais conscientemente sobre o seu valor. Quando
a vida de grupos específicos de pessoas é ameaçada é o momento de se pensar mais conscientemente
sobre direitos humanos. É claro que o valor da vida e os direitos humanos estão intrinsecamente
relacionados. Não é possível afirmar um e negar o outro. Contudo, é preciso deixar claro que os direitos
humanos têm a ver com a defesa do valor da vida de grupos específicos que estão mais vulneráveis à
ameaça de morte. É por isso que a Declaração Universal dos Direitos Humanos surge como uma resposta
às atrocidades da Segunda Grande Guerra. Apesar de a guerra ter sido uma ameaça generalizada à
vida, ela foi muito mais mortal para determinados grupos e seguindo algumas práticas mortais bem
específicas. O racismo e desprezo por grupos etnicamente e sociopoliticamente minoritários marcou a
violência da Segunda Grande Guerra. Da mesma forma, tortura, agressões militares com alvos civis, e o
bombardeio nuclear caracterizaram as novas táticas que ameaçavam a vida da humanidade. É diante
desse contexto específico que surge a DUDH.
É isso que explica duas características importantes da DUDH: a linguagem de fraternidade
universal e de igualdade. Essas duas características estão refletidas nas primeiras linhas da DUDH:
“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”
(Preâmbulo). Em seus trinta curtos artigos, a DUDH defende o direito à vida, à liberdade e à segurança
sem distinção de qualquer tipo, como raça, cor, sexo, língua, religião ou opinião política (ver Artigos 2 e
3). Vale destacar que na defesa do direito de segurança, diante das atrocidades de tortura e extermínio
da Segunda Grande Guerra, a DUDH fala especificamente sobre o direito de julgamentos públicos e
justos, a proteção da lei, assim como repudia qualquer prática de tortura (ver Artigos 5 a 12). Esses
valores marcam a primeira parte da DUDH que é, certamente, sua parte mais conhecida. No entanto,
é necessário atentar para sua segunda parte para evitar uma avaliação da DUDH como um projeto
totalitário e “progressista”.
Popularmente, como apontamos no início dessa edição, a DUDH é acusada de defender “bandidos”.
Esperamos que o que vimos até aqui já seja o suficiente para se perceber a falsidade dessa acusação. No
entanto, mesmo em discussões mais elevadas sobre a DUDH, existem algumas falsas impressões que
levam a críticas infundadas. A DUDH é interpretada como um projeto das elites intelectuais das nações
mais ricas, impondo seus valores e suas diretrizes seculares ideologicamente determinados, a todo o
mundo. Tal interpretação imagina que a DUDH invalida outras formas de defesa do valor da vida e dos
direitos humanos, especialmente aquelas de fundamento religioso. Essa crítica entende a linguagem da
DUDH como muito detalhada e específica, traindo seu caráter universal ao ignorar as particularidades
de cada cultura, povo e país. Às vezes, tal visão leva a imaginar a DUDH como mais uma força para
fundamentar um governo global despótico.
É por isso que é necessário dar uma atenção maior à segunda parte da DUDH. De forma resumida,
essa segunda parte lida com direitos socioeconômicos e culturais. Ela começa com o Artigo 16 sobre o
direito de formar família a partir de decisões consensuais entre dois adultos. Mais ainda, a DUDH afirma
que “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do
Estado” (Artigo 16.3).
É a partir dessa afirmação que a DUDH prescreve os direitos a propriedade, cultura, religião e educação,
organização social, trabalho digno e condições adequadas de vida para o sustento individual e familiar.
Duas coisas ficam claras nessa segunda parte da DUDH: seu aspecto universal não elimina o particular
e os direitos são somente a condição básica para o desenvolvimento humano. A forma como a DUDH
estabelece a família como realidade fundamental cria um eixo entre o universal e o particular. O
fundamento central da DUDH, estabelecido em seu Preâmbulo, é a fraternidade universal, ou seja, toda
a humanidade é uma única família humana. Mas tal fundamento universal é derivado, e não imposto,
da realidade particular da família como núcleo natural e fundamental da sociedade, ou seja, da própria
humanidade. Mais ainda, o fundamento da fraternidade universal não é uma ideia na DUDH. Ela serve
tanto como ponto de partida para os direitos prescritos quanto como a realidade experimentada
quando esses direitos são garantidos. A fraternidade universal não precisa ser aceita de antemão, mas
certamente será experimentada por todos os envolvidos na garantia dos direitos humanos.
Tendo a família como núcleo natural e fundamental, a DUDH estabelece a particularidade da
experiência familiar como ponto de partida de seu valor fundante da fraternidade universal. Mas não
só. A família, em sua realidade particular e universal, é fundante para qualquer valor universal, inclusive
de direitos humanos. Mas, como vimos, a DUDH tem origem em experiências em que esse fundamento
foi profundamente negado e violado. Assim, o que fazer quando a família, no âmbito particular e
universal, se torna um ambiente de violência e negligência a ponto de colocar em risco a vida e o bom
desenvolvimento de seus membros? A ABBA, obviamente, trabalha exatamente nesse difícil contexto,
o que nos faz reconhecer que a família de origem, em si, ou qualquer outra realidade particular, não
pode estar acima de certos valores. É por isso que devemos considerar quando a linguagem dos direitos
humanos é específica e quando é aberta.
Quando a DUDH fala sobre violência, tortura, injustiças de forma geral, a linguagem é específica.
Podemos ver dois exemplos, um negativo e um positivo, dentro do contexto da vida familiar. No artigo
12, a DUDH afirma que “ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu
lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação”. É uma linguagem específica que
pode ser aplicada de forma clara em casos particulares. No artigo 25, a DUDH afirma que “a maternidade
e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora
do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”. Também, uma linguagem específica que pode ser
aplicada de forma clara em casos particulares.
Essa linguagem, de fato, elimina qualquer possibilidade de significado diferente em contextos
diferentes. A linguagem específica, porém, ocorre para se evitar abusos e não para desqualificar valores e
aplicações específicas a cada família, povo, nação, cultura e religião. É aí que entra a linguagem aberta de
valores. A afirmação fundamental de que “todo ser humano tem o direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal” (Artigo 3) utiliza uma linguagem aberta o suficiente para ser preenchida por contextos particulares.
Esses são valores derivados da experiência comum humana e, nesse sentido, são universais, mas sem
perder seu caráter aberto que dê conta de expressões particulares. Esse equilíbrio entre universalidade
e particularidade é importante para evitar que tais valores sejam abusados de duas formas: (1) como
valores específicos demais determinados por um grupo a serem impostos sobre outros grupos; (2) como
valores abertos demais a ponto de um grupo específico ser capaz de violar os direitos de outros grupos ou
indivíduos e ainda se fundamentar em tais valores.
Como, então, lidamos com essa questão entre valores e direitos específicos, entre linguagem
específica e aberta? De forma mais prática, como lidar com uma família que tem valores e segue práticas
que colocam em risco a vida, ou os direitos humanos, de seus membros? Uma das respostas dadas pela
DUDH é que um direito não pode ser usado contra outro direito (Artigo 30). Por exemplo, o direito de
proteção contra a intervenção na vida privada, na família ou no lar (Artigo 12), não pode ser usado como
justificativa para impedir a interferência da comunidade ou do Estado em casos em que a família viola
direitos de seus membros, especialmente mulheres e crianças. A liberdade religiosa, por exemplo, que é
um dos valores da DUDH, não pode ser usada para justificar a violação de outro direito, como o direito
à segurança pessoal. É claro que existem casos mais ambíguos e complexos, mas a DUDH oferece um
excelente fundamento para o diálogo que tem o objetivo de preservar e fazer avançar a vida de todos.
Diante de tal objetivo, fica mais compreensível a ênfase dos direitos humanos em defender grupos
específicos que estão mais vulneráveis à ameaça de morte. É exatamente por querer preservar e avançar a
vida de todos é que os direitos humanos são um instrumento de defesa dos grupos mais vulneráveis, que
mais sofreram violações, abusos e violências contra sua vida por causa de uma característica específica
de suas identidades. Na DUDH, os direitos humanos são afirmados a todos “sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (Artigo 2). A linguagem negativa, “sem distinção”,
precisou ser desenvolvida de forma afirmativa a fim de que cada grupo tenha seus direitos garantidos para
poderem afirmar a igualdade de valor de suas identidades específicas, especialmente porque a violação de
seus direitos se dá, muitas vezes, em razão dessa identidade. Um cristão, na China, que tem seus direitos
humanos violados por ser cristão, por exemplo, não somente deve ter seus direitos garantidos “sem
distinção” de sua identidade, mas sim na afirmação da igualdade de valor de sua identidade como cristão
diante das outras identidades que, por terem maior status e poder, menosprezam a identidade cristã. Uma
pessoa negra que sofre racismo, portanto tem seus direitos humanos violados, não somente deve ter seus
direitos garantidos “sem distinção”, mas na afirmação da igualdade de valor de sua identidade diante das
outras identidades que menosprezam a identidade negra. É exatamente por que “todas as vidas importam”
é que se faz necessário dizer que “vidas negras importam”, “vidas pobres importam”, “vidas encarceradas
importam”, etc.
Isso nos leva ao último aspecto da DUDH que precisa ser mencionado aqui, mais uma vez atentando para a
segunda parte da DUDH, que lida com direitos socioeconômicos e culturais. David Smolin resume bem os direitos
incluídos nesta segunda parte da DUDH: “direito ao trabalho, incluindo a livre escolha de emprego, condições
de trabalho justas e favoráveis, e proteção contra o desemprego; direito ao descanso e ao lazer, incluindo
férias remuneradas; padrão de vida adequado para a saúde e o bem-estar do trabalhador e de sua família,
incluindo melhora contínua das condições de vida e o direito de seguridade em caso de desemprego, doença,
deficiência física, viuvez e idade avançada; educação elementar obrigatória e gratuita, implementação
progressiva de educação secundária gratuita, e um sistema de educação superior acessível a todos com base
em méritos; direito de formar e integrar sindicatos; direito ao padrão mais elevado possível de saúde física e mental”.
Esses direitos práticos e específicos qualificam os valores universais da primeira parte,
especialmente o direito à vida, à liberdade e à segurança. Não só isso, a relação entre essas duas partes
também é sobre como a primeira parte é alcançada a partir da segunda. A verdade é que não há a
possibilidade de se garantir o direito à vida, à liberdade e à segurança se não existir um ambiente de
igualdade de oportunidades e justiça social que proporcionam o bom desenvolvimento humano. O
ser humano e a humanidade dependem de um ambiente que supra suas necessidades mais básicas,
especialmente as necessidades sociais da família e de uma comunidade acolhedora, e as necessidades
materiais de alimentação, saúde e moradia, a fim de que seu potencial seja buscado e alcançado. Nesse
sentido, para que indivíduos e grupos menosprezados e violados sejam capazes de afirmar seu valor
e dignidade, é necessário que seus direitos humanos sejam garantidos. Por outro lado, com direitos
humanos garantidos, o valor e a dignidade de todos são afirmados e cria-se um ambiente adequado para
o bom desenvolvimento humano.
E é aqui que entra um problema fundamental da DUDH: ela não tem caráter legal com a força
de garantir os direitos humanos que defende. A DUDH depende que seus valores sejam aceitos por
governos, comunidades e indivíduos a fim de que tais direitos sejam garantidos. E é exatamente isso
que veremos a seguir. Falaremos da influência da DUDH na legislação brasileira e de como comunidades,
especialmente comunidades cristãs, podem dialogar com a DUDH. Seja pela imposição da lei, ou pelo
diálogo e esforço público colaborativo, veremos que o objetivo é, especificamente para nós na ABBA, que
a humanidade, em sua identidade como imagem e semelhança de Deus, família de Deus, se desenvolva
plenamente em seu propósito divino de contribuir para o avanço de um mundo de riquezas e belezas
abundantes; um mundo capaz de acolher, fomentar e sustentar toda sorte de vida; uma sociedade
cultural e economicamente diversa, plural e vibrante.
DUDH, CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
No Brasil, como vimos, a DUDH é pouco conhecida. Contudo, a sociedade brasileira tem sido
profundamente influenciada por ela. Tanto a Constituição Federal de 1988 (CF/88), quanto o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) de 1992, foram influenciados pelos valores da DUDH. Neste tópico,
queremos mostrar essa influência e sua importância na defesa dos direitos humanos no contexto
brasileiro, especialmente na área de atuação da ABBA.
A CF/88, de forma geral, e a ECA, no caso específico de crianças e adolescentes, seguem valores
da DUDH quanto aos direitos humanos. Além desse compartilhamento de valores, como veremos logo,
a CF/88 também surge como resposta a um período nacional, a ditadura militar, em que as violações
de direitos humanos foram prática comum, destruindo a vida de muitos e prejudicando toda a sociedade
brasileira. Esse contexto de violência, abuso e morte, assim como ocorreu no contexto da Segunda
Grande Guerra que deu origem à DUDH, foi mais prejudicial e destrutivo para certos grupos da sociedade
brasileira. Por isso, como na DUDH, temos um valor de igualdade notório. A CF/88 diz o seguinte:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade” (Artigo 5). Já o ECA afirma que a criança e o adolescente têm direito “à vida e à saúde”
(Artigo 7), “à liberdade, ao respeito e à dignidade” (Artigo 15), e “à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária “ (Artigo 4). A semelhança com o que vimos na DUDH é nítida.
No caso do ECA, valores universais como vida e liberdade são colocados lado a lado com os
direitos mais específicos e práticos, como saúde, alimentação, educação, esporte, etc. De certa forma,
o ECA torna explícita a relação entre a primeira e a segunda partes da DUDH. Outro desenvolvimento
interessante que o ECA apresenta, como implicação da DUDH, é o objetivo de tais valores e direitos. A
proteção garantida pelo ECA a crianças e adolescentes tem o seguinte objetivo: “[assegurar] todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e
social, em condições de liberdade e de dignidade” (Artigo 3).
O bom desenvolvimento humano, seguindo os valores apresentados pela DUDH, a CF/88 e o
ECA, somente pode ser alcançado num ambiente que garanta, pelos direitos humanos, oportunidades
e facilidades para todos. Dessa forma, também, o ECA trabalha com o conceito de autoafirmação de
grupos minoritários, vulneráveis, cuja identidade particular é alvo de menosprezo e violência. A criança
e o adolescente são tratados como “sujeitos de direitos civis, humanos e sociais” (Artigo 15). E o ECA
ainda faz questão de usar critérios anti-discriminatórios iguais aos da DUDH, reforçando a identidade
da infância e da adolescência como dignas de valorização igual à de outras identidades: “Os direitos
enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento,
situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de
desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou
outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem” (Artigo 3).
A CF/88 faz uma separação semelhante a que temos na DUDH ao, primeiro, mencionar os valores
universais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Artigo 5), para depois falar
de direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição” (Artigo 6). Um dos fundamentos mais significativos da DUDH é o
reconhecimento de que a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade. Isso se torna uma marca tanto da
CF/88 quanto do ECA. No artigo 226, a CF/88 afirma e garante: “A família, base da sociedade, tem especial proteção
do Estado”. No artigo seguinte, vemos uma relação bem interessante entre direitos humanos, família, Estado e as
relações de prioridade: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Nesse importante artigo,
a CF/88 estabelece, de forma mais integrada do que a DUDH, que os direitos humanos, especialmente no caso de crianças
e adolescentes, somente poderão ser garantidos por um esforço conjunto da família, da sociedade e do Estado, e que esses
três atores sociais devem fiscalizar um ao outro a fim de impedir a violação de direitos.
No quarto artigo do ECA, repete-se a mesma redação do artigo 227 da CF/88. Mas o ECA apresenta,
em outros artigos, uma linguagem ainda mais coerente com os valores—e não necessariamente com a
redação—da DUDH. Quero chamar a atenção do leitor para duas expressões que aparecem no ECA. A
primeira está no artigo 7, que diz: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,
mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento
sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. A parte final é de importância singular. O ECA
usa a linguagem de “desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Ainda
mais do que no caso da DUDH, o ECA utiliza uma linguagem de valores que não impõe práticas específicas,
dando espaço para que cada família, comunidade e cultura apliquem esses valores adequadamente ao
seu contexto. A base específica que busca evitar abusos está lá (“o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”), mas os valores “universais” são abertos para serem preenchidos por
práticas locais, particulares, contextuais.
Algo semelhante acontece com a segunda expressão que aparece no ECA, que merece nossa
atenção, e está em seu artigo 19: “É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de
sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária,
em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. A expressão, obviamente, é “desenvolvimento
integral”. Esse artigo é ainda mais relevante por garantir um direito que não aparece nem na DUDH nem
na CF/88: a convivência familiar em ambiente que garanta o desenvolvimento integral da criança e do
adolescente é prioritária à proteção da família de origem.
Tanto a DUDH quanto a CF/88 apresentam o critério de que um direito não pode ser garantido
quando este justifica abusos de outros direitos. Mas nenhum dos dois documentos “resolve” possíveis
impasses. O ECA oferece um importante exemplo de como aplicar os valores dos direitos humanos
quando certas práticas locais e contextuais preenchem tais valores de formas abusivas. No caso
específico do ECA, o que temos é o impasse entre o direito de proteção da família e o direito de proteção
da criança e do adolescente contra “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”. A solução oferecida pelo ECA é a garantia da proteção da criança e do adolescente,
e a garantia do convívio familiar por meio de família substituta. Com tal solução, o ECA eleva o direito
à vida e ao “desenvolvimento integral” como valores “universais”, enquanto continua reconhecendo
que tais valores somente encontram sua expressão e fundamento em experiências locais, particulares,
contextuais, especialmente mediadas pela família como base da sociedade.
Ao contemplar a necessidade de famílias substitutas a fim de garantir o “desenvolvimento
integral” de algumas crianças e adolescentes, o ECA reconhece práticas locais, particulares e contextuais
de “apadrinhamento” e adoção que são conhecidas na humanidade em culturas antiqüíssimas, como na
antiga Babilônia, ainda no segundo milênio a.C., e em culturas contemporâneas, como a brasileira dos
séculos XIX e XX.
HUMANITARISMO E O TRABALHO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL CRISTÃO NO BRASIL
Como muitos reconhecem, a DUDH não tem caráter legal e não pode ser imposta sobre nenhuma nação
soberana. No entanto, esse tipo de documento internacional exerce um papel relevante na construção de
uma sociedade melhor. Primeiro, esses documentos respondem a eventos que destroem a humanidade
como um todo e certos grupos de status minoritário de forma específica. Assim, esses documentos
repudiam tais eventos e práticas e sugerem uma forma de construirmos uma sociedade melhor.
Segundo, esses documentos expressam valores que são reconhecidos pela maioria das nações, culturas,
comunidades e famílias. Assim, esses documentos se tornam um bom ponto de partida para se pensar
a construção de uma sociedade melhor. Terceiro, esses documentos tendem a ser assinados pela maior
parte das nações e tal assinatura se torna um critério de prestação de contas internacional. Quarto, esses
documentos influenciam as legislações nacionais, como vimos claramente no caso brasileiro da CF/88
e ECA. Mesmo quando não há uma influência legislativa, ainda pode existir uma influência política que
contribui na delineação de políticas públicas.
Para nós, cristãos envolvidos em serviços de assistência social, as atividades que exercemos não
estão fundamentadas na DUDH, na CF/88 ou no ECA. Nosso fundamento está em nossa consciência de
fé. Contudo, nossas atividades não são contrárias a esses documentos, nem podem existir, no âmbito
público, sem o apoio e corroboração da legislação. A DUDH é uma forte aliada em nosso trabalho e não
um inimigo a ser combatido. A CF/88 e o ECA são ainda mais, pois podemos corroborar nosso trabalho
a partir da legislação de nosso país. Isso não quer dizer que em certos assuntos, nossa consciência de fé
e esses documentos não entram em conflito. Mas quer dizer que a solução desses conflitos não deve ser
combativa, e sim colaborativa, pensando em formas adequadas de interpretar esses documentos, e como
“preencher” seus valores a partir de práticas adequadas a nossa consciência de fé, já que o propósito
desses documentos é exatamente esse. Para nós, cristãos, que acreditamos na fraternidade universal da
humanidade e da formação de uma identidade familiar prioritária à família de origem, na participação
do Corpo de Cristo, o exemplo do direito do convívio familiar, por meio de família substituta, garantido
no ECA, é uma boa ilustração de como nossa consciência de fé, os direitos humanos e a legislação podem
dialogar bem, encontrando formas de serem praticadas para o bem comum na proteção dos mais
vulneráveis.
Por todo o Antigo e Novo Testamentos, o pertencimento à família de Deus, como forma de
estabelecer um verdadeiro ambiente familiar, comunitário, nacional e global, para o “desenvolvimento
integral” de cada indivíduo e comunidade, não está em laços de consangüinidade, ou seja, não depende
da família de origem.
Obviamente, as famílias de origem, especialmente no Antigo Testamento, são o meio comum
e esperado para o pertencimento à família de Deus e o estabelecimento desse ambiente propício ao
“desenvolvimento integral”. No entanto, esse não é o único meio, e o valor do pertencimento à família
de Deus supera a lealdade ou o direito devido à família de origem. O cuidado paternal de Deus para
com todos os seres humanos extrapola qualquer tipo de limite que a família de origem de Abraão, por
exemplo, possa ter. A família de Deus não se restringe à consangüinidade da família de Abraão nem
no Antigo Testamento, nem no Novo. Onde quer que a família de Deus ofereça cuidado familiar a uma
pessoa, ou seja, um cuidado que garanta “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”,
protegendo-a de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”,
ali existe uma expressão e um convite de pertencimento à família divina. Podemos ver isso na narrativa
de Rute, a mulher moabita que por meio de um cuidado familiar mútuo entre ela e Noemi, se tornou
parte da família de Deus. Podemos ver isso na própria identidade de Israel como um todo, que nunca
foi exclusivamente uma identidade genética ou étnica, mas de aliança. Os cuidados listados em Mateus
25.31–46, por meio do qual Jesus, o Rei, irá julgar todas as nações, são cuidados típicos da lealdade
e da generosidade esperada entre parentes e, por isso, são cuidados que expressam e convidam ao
pertencimento da família de Deus, por meio de Jesus. Por fim, todo o esforço teológico paulino pode
ser resumido em sua declaração de que “todos são filhos de Deus pela lealdade de Jesus, o Rei (Carta
aos Gálatas 3.26). E tudo isso se dá por meio de uma família “substituta” que promove, acima de tudo,
vida e vida em abundância a todos, especialmente os mais vulneráveis que têm sua identidade e valor
menosprezados.
Nessa família de Deus, em Jesus, tem valores universais que também são preenchidos pela
experiência particular de seus membros. A universalidade, aqui, se fundamenta na diversidade dos
particulares. A fraternidade universal é experimentada e o plano divino universal é cumprido por meio
de famílias particulares que, como membros diversos de um mesmo corpo, o corpo de Cristo, formam
uma única família de Deus.
Na próxima edição da ABBA-PAI, vamos expandir mais a relação entre os direitos humanos e fé
a cristã. Demonstraremos as fontes culturais, especialmente religiosas e filosóficas, por trás dos valores
dos direitos humanos expressos na DUDH. A fé bíblica, certamente faz parte dessa tradição, ainda que
não seja a única. Mas a partir da fé bíblica, como parte das fontes que produziram, direta e indiretamente,
os valores dos direitos humanos e da DUDH, falaremos sobre a relação entre missão cristã e os direitos
humanos. Até a próxima.
- EQUIPE ABBA
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