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OS FUNDAMENTOS CULTURAIS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Defender o direito de grupos vulneráveis não foi uma invenção da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, da ONU, em 1948. Esse documento não surge num vácuo cultural; pelo contrário, ele faz parte
de uma longa história da busca humana por reconhecer o que é justo, o que é bom, o que promove o bem de indivíduos e comunidades para o avanço de uma sociedade melhor.
Esperamos que a última edição da ABBA-PAI tenha sido útil para entendermos melhor do que se
trata os direitos humanos, especialmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), e como
cristãos envolvidos com assistência social podem dialogar com os valores e movimentos de direitos
humanos. Nesta edição, queremos dar um passo para trás para que possamos avançar ainda mais nessa
conversa. Vamos discutir o contexto cultural e as possíveis influências culturais que levaram à DUDH. A
apreciação dessas questões culturais por trás da DUDH vão nos ajudar a olhar ainda mais para trás, para
a Antiguidade, na próxima edição da ABBA-PAI, para tentar entender a relação entre direitos humanos
e a fé bíblica. Só então poderemos olhar para o presente e para o futuro e propormos um chamado à
missão cristã marcada pelo avanço dos direitos humanos.
O CONTEXTO CULTURAL DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
A confiança na bondade e no progresso humano por meio da razão marca a sociedade ocidental no
período moderno, especialmente entre o fim do século XVIII e metade do século XX. Por um lado, esse é
o período dos movimentos colonialistas e de aspirações imperialistas, marcados pela guerra, genocídios
e escravidão. Por outro lado, também é o período das grandes revoluções e de aspirações de liberdade,
igualdade e fraternidade, como no famoso slogan da Revolução Francesa.
Por mais que esses dois fenômenos pareçam antagônicos, eles são culturalmente fundamentados
por essa confiança na bondade e no progresso humano por meio da razão. Ambos são projetos humanos
de construção de uma civilização à imagem e semelhança dos “iluminados” que, de uma forma ou
de outra, tira do caminho e elimina os “selvagens”, aqueles com uma identidade e um modo de viver
diferente dos ideais ocidentais. É esse projeto que encontra o seu fim na Segunda Grande Guerra,
quando o próprio ocidente sofre as consequências de tais aspirações. As atrocidades contra a vida e a
humanidade, antes uma realidade promovida pelo ocidente contra povos nativos, agora atinge a própria
civilização ocidental. Quando os “iluminados” sofrem as consequências do seu próprio poder “selvagem”,
a ingenuidade da confiança na bondade e no progresso humano por meio da razão se revela e o projeto
moderno encontra seu fim.
Quando situamos a DUDH, que surge logo após a Segunda Grande Guerra, nesse contexto sócio
político e cultural, duas coisas ficam claras. A primeira é que a DUDH rejeita o projeto imperialista e
universalizante típico do ocidente no período moderno. A segunda é que os ideais e os valores que
marcam o projeto da modernidade continuam influentes no ocidente, de forma geral, e na DUDH
especificamente. De forma simplificada, a DUDH aceita o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade,
mas rejeita dois erros cometidos pelo projeto moderno ocidental que têm a ver com uma dinâmica de
poder “de cima para baixo”: desconsiderar as realidades particulares de cada povo e comunidade na
busca por esse ideal; usar qualquer forma de força para implementar esse ideal. Se estamos falando
dos direitos humanos de todos, e não só de alguns, é claro que esses dois erros impedem, em vez de
avançarem, o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade.
A ORIGEM CULTURAL DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Um pequeno resumo histórico será útil para guiar nossa discussão da origem cultural dos direitos
humanos, especialmente em sua versão na DUDH. A noção de direitos humanos tem raízes na
Antiguidade, mas é na Idade Média que ela ganha força no desenvolvimento dos “direitos naturais”
da teologia católica escolástica, especialmente por Tomás de Aquino. Mas, para a concepção atual de
direitos humanos, a influência fundamental está na era moderna, a partir da Declaração de Direitos
Inglesa de 1689, a Constituição dos Estados Unidos de 1787, e a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789, tendo origem na Revolução Francesa.
Alguns exemplos desses três movimentos podem ser úteis para mostrar esse histórico moderno
na busca por definições claras sobre os direitos humanos que culminou com a DUDH. A Declaração
de Direitos Inglesas é o resultado de um esforço do Parlamento contra abusos de poder por parte da
monarquia, especialmente num contexto religioso, pois o rei Jaime II buscava expandir sua fé católica
pela Inglaterra, o que desagradava a aristocracia anglicana. Assim, neste documento, o Parlamento
defende alguns direitos que se fazem presente na DUDH, por exemplo, a liberdade religiosa, a liberdade
de expressão e de defesa num processo legal. O caso inglês é interessante porque o Parlamento busca
garantir esses direitos convidando o rei Guilherme III da Holanda, um país que garantia proteção a
protestantes perseguidos na Inglaterra e na França, a estar presente no dia da votação do documento.
Em outras palavras, a garantia dos direitos é obtida, em primeiro momento, por meio de uma ameaça
militar estrangeira contra a monarquia inglesa. Ainda que os direitos garantidos beneficiem grande
parte da população inglesa, eles surgem de disputas políticas entre grupos com interesses políticos, por
meio de forças políticas e militares. Isso é especialmente verdade quanto às disputas religiosas, já que a
liberdade religiosa defendida no documento busca garantir a liberdade protestante das elites políticas
do Parlamento.
No caso da Constituição dos Estados Unidos de 1787, o contexto também é de disputas políticas,
neste caso entre a elite colonial e a monarquia inglesa. Em grande parte, o documento estadunidense
é sobre organização política e não sobre direitos humanos. A preocupação com os direitos humanos
se encontra nas emendas promulgadas posteriormente, sendo as 11 primeiras emendas promulgadas
em 1798. À semelhança da DUDH, o documento estadunidense defende a liberdade religiosa, o direito
à propriedade e a defesa em processos legais. Um detalhe interessante se encontra na Emenda IX, em
que é dito: “a enumeração de certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando
ou coibindo outros direitos inerentes ao povo”. O princípio apresentado aqui é desenvolvido no último
artigo (art. 30) da DUDH: “Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de
maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma
atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados”.
Os direitos humanos apresentados nas emendas da Constituição dos Estados Unidos, como no caso
inglês, traz benefícios para a população geral, mas serve os interesses das elites políticas e é garantido,
obviamente, por vias militares. O caso estadunidense é flagrante, já que não há nenhuma consideração
pelos direitos humanos das comunidades nativas e, muito menos, consideração pelos seus valores e
modo de vida para definir os direitos humanos expressados em seu documento fundante. A defesa da
liberdade religiosa, então, é uma defesa da liberdade cristã acima de tudo, garantindo os privilégios
religiosos da elite política colonial. Mais uma vez, como no caso inglês, o cristianismo está positiva e
negativamente relacionado com a garantia de direitos humanos.
Na França, pela primeira vez, temos um movimento de busca por direitos humanos sem
interesses religiosos; pelo contrário, parte da Revolução Francesa tem a ver com eliminar o fundamento
religioso da organização política, especialmente da monarquia. É na França, também, que existe uma
participação popular significativa na formulação e busca pelos direitos humanos, ainda que haja uma
forte influência da elite intelectual francesa e o movimento tenha tido sua força política relacionada
com o apoio da aristocracia e da burquesia. A participação popular, mesmo na definição dos direitos
humanos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, se deve ao fato de a Revolução
Francesa ter a ver, em grande parte, com a produção agrária. A França era o país mais populoso da
Europa, sua produção ainda era organizada pelo sistema feudal e houve uma perda grande na produção
agrária em 1788. Todos esses fatores pressionavam a garantia de sustento mínimo da população de
forma geral. Compartilhado com os documentos inglês e estadunidense, o documento francês fala sobre
a liberdade de religião e liberdade de expressão (artigo 10), processos legais (artigo 9), mas acrescenta
alguns direitos e definições que merecem destaque. O documento francês é explícito sobre a igualdade
inata de todas as pessoas e destaca a distinção social como sendo justificada somente quando útil
para o bem comum (artigo 1). O documento francês estabelece a propriedade como um fundamento
para a liberdade, portanto, como direito de todos (artigo 17). Por fim, o documento francês garante o
direito à resistência à opressão (artigo 2). Diferente dos outros dois documentos, na França existe uma
intencionalidade em qualificar a liberdade de uma forma bem ampla, eliminando os fundamentos de
privilégio das elites. No Artigo 4, é dito que “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem
por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”.
Aqui, não se trata de liberdade de algum poder opressor somente, mas liberdade para auto-afirmação,
tendo no direito do próximo o limite da liberdade individual. É possível que aqui esteja parte da origem
de dois fundamentos importantes da DUDH: a fraternidade e a pluralidade humanas como expressão da
sua dignidade. Uma característica negativa que a luta por direitos humanos na França compartilha com
a Inglaterra e os Estados Unidos é uso da força militar ou violenta para sua garantia.
Por esses exemplos, podemos ver como a DUDH, como um documento histórico, se encaixa bem
como herdeira de um processo importante das culturas ocidentais na busca pelos direito humanos.
Pelo exemplo dos três documentos que vimos, podemos falar desse processo a partir dos três temas da
Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Em primeiro lugar, o direito humano básico
era a liberdade no sentido de “liberdade da” coerção de poderes, especialmente do Estado. Em segundo
lugar, busca-se lutar contra as desigualdades criadas pela exploração imperialista e capitalista, o que
depende de intervenções estatais para assegurar os “direitos a” bens e benefícios. Em terceiro lugar
percebe-se que os direitos humanos dependem de “direitos solidários” com base na concepção
da fraternidade, ou seja, da humanidade como família em que cada grupo tem seu valor afirmado
(pluralismo) e cujo bem estar e futuro de todos é interdependente. Os leitores da última edição da
ABBA-PAI podem perceber que a DUDH, obviamente, está fundamentada nesses três elementos dos
direitos humanos.
Como vimos um pouco antes, apesar da DUDH se encaixar nesse processo histórico das culturas
ocidentais e compartilhar dos seus valores, ela ainda é uma rejeição do projeto “iluminista”, que se
mostrou desastroso na Segunda Grande Guerra. A DUDH, como foi falado, rejeita o projeto imperialista
e universalizante típico do ocidente no período moderno. Essa rejeição não tem somente um caráter
teórico, mas prático, ao se colocar como um documento que não tem força de lei, e, mais importante,
que intencionalmente deixa em aberto muitas aplicações dos seus valores conforme a particularidade
de cada comunidade.
Essa tensão entre valores humanitários e práticas imperialistas e universalizantes revela um
uma característica relevante do desenvolvimento dos direitos humanos de forma geral: a discussão dos
direitos humanos está entrelaçada com uma discussão maior sobre ordem política entre indivíduos,
comunidades, e poderes institucionais, especialmente os poderes estatais. Essa percepção será relevante
quando lidarmos com os valores de direitos humanos na Antiguidade e na Bíblia, já que neste contexto
o papel dos reis é fundamental. Mas, na parte final desta edição, vale considerar como o cristianismo,
como parte da cultura ocidental, contribuiu para a formulação dos valores dos direitos humanos
e participou do projeto imperialista e universalizante que falhou miseravelmente para o avanço dos
direitos humanos.
O CRISTIANISMO E OS FUNDAMENTOS CULTURAIS MODERNOS DA DUDH
Ainda que essa questão seja um tanto difícil de lidar, ela é importante para os propósitos do nosso estudo
sobre direitos humanos. É a partir dessa consideração que podemos apontar para um direcionamento
melhor na nossa busca por uma missão cristã que faz avançar, e não impedir, os direitos humanos.
Por um lado, tradições cristãs bem influentes sobre a ordem política moderna ocidental,
especialmente na Inglaterra e Estados Unidos, enfatizam a consciência, a liberdade e os direitos dos
indivíduos contra qualquer forma de controle tirânico de poderes estabelecidos, especialmente o
Estado. Essa ênfase é o que mais aproxima o cristianismo como uma das origens culturais dos direitos
humanos, pois essa era uma causa comum com os humanistas seculares. Isso revela que não estamos
diante de um valor exclusivamente cristão. Podemos traçar esse valor de volta para a cultura Greco romana.
Assim, podemos dizer que estamos diante de uma origem simplesmente ocidental, da qual o
cristianismo é só uma parte.
Por outro lado, essas tradições cristãs também defendem a submissão às autoridades, muitas
vezes em detrimento da liberdade individual e do bem comum, e projetam esse poder e autoridade
sobre toda a sociedade para a própria igreja. Especialmente no contexto da Inglaterra e dos Estados
Unidos, essa aparente contradição é bastante compreensível. A defesa pela liberdade, nesse contexto,
era uma disputa de poder político no qual a religião era um fator importante. Tratava-se da liberdade
de certos poderes estatais que serviam o propósito de uma elite que buscava formar um poder estatal
diferente. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, era a liberdade do poder estatal da Inglaterra pelo
interesse das elites políticas da colônia para formar seu próprio poder estatal. Pensando no papel da
religião nessa disputa, afirmava-se a liberdade da religião contra imposições coloniais, mas afirmava-se
a submissão às autoridades das elites na colônia.
De alguma forma, então, essa tensão entre a liberdade de autoridades políticas e submissão a
outras autoridades política servia para garantir um poder político a certas tradições cristãs que eram
privilegiadas pela elite política. Em grande medida, portanto, a liberdade, como um direito humano
dentro do projeto moderno, assegurava a autoridade da igreja independentemente de certos poderes
políticos, mas servindo aos interesses de outros poderes políticos.
É nessa confusão entre poderes políticos e o papel do cristianismo como parte da cultura
ocidental que vemos a igreja fundamentando certos valores dos direitos humanos ao mesmo tempo
que participava de práticas de violações profundas dos direitos humanos de diversos indivíduos e
comunidades.
Diante desse caráter político da autoridade da igreja e sua relação com a cultura ocidental
como um projeto moderno, especialmente na tradição cristã protestante, dois fenômenos diferentes
aconteceram que são relevantes para a discussão sobre direitos humanos. O primeiro é que se
confunde o avanço da “civilização” ocidental com o avanço do cristianismo. Por exemplo, tipicamente
é defendido que o capitalismo e a democracia constitucional são desenvolvimentos particulares da
tradição cristã protestante. Dada a relação entre esses fenômenos e a cultura ocidental, David Smolin
conclui, corretamente, a partir da mesma lógica, que “isso meramente demonstra a verdade de que o
protestantismo, historicamente, é um desenvolvimento puramente ocidental”. Em certo sentido, essa
relação entre igreja e cultura ou igreja e Estado, que permeia diversas tradições cristãs, e não somente o
protestantismo, faz com que a luta dos direitos humanos possa ser, também, uma luta contra a autoridade
imposta pela própria igreja, algo que ocorreu de forma muito explícita na Revolução Francesa. Isso tem
a ver com o segundo fenômeno. Em vez de depender da autoridade moral da igreja para determinar os
valores dos direitos humanos, surge a busca por uma autoridade moral separada da igreja, baseada na
razão e não na religião.
É neste segundo fenômeno que está a explicação para a confusão existente entre a relação do
cristianismo com os direitos humanos. Para alguns, os direitos humanos como o conhecemos hoje é
como se fosse uma manifestação direta dos valores cristãos, especialmente protestantes e ocidentais.
Para muitos outros, os direitos humanos somente avançaram pelos esforços de humanistas seculares em
oposição à igreja. Talvez essa segunda opção seja a mais comum entre cristãos evangélicos. Por um lado,
ela se explica pela grande diferença na relação com a igreja entre movimentos de direitos humanos da
tradição protestante, puritana, inglesa e estadunidense, e da tradição secular francesa. No fim, porém,
ambas as tradições apresentaram um caráter fortemente ocidental e iluminista, com imposições dos
seus valores e cultura sobre outras por meio do poder político e até militar, especialmente no caso do
movimento de colonização.
Ter consciência dessa relação do cristianismo com a cultura ocidental e o projeto moderno nos
ajuda em dois pontos que levam a dois erros diferentes. O primeiro é imaginar que o poder político,
especialmente o estatal, está sempre em oposição aos direitos humanos. O poder político tem um
papel fundamental na garantia dos direitos humanos, mas precisa fazer parte de uma rede mais ampla.
Somente assim, o poder estatal poderá considerar os direitos humanos, cujos valores e aplicações
práticas, beneficiam todos os indivíduos e comunidades em uma sociedade plural, e não somente um
grupo da elite, de uma “maioria moral”. O segundo erro é imaginar que ao rejeitar o papel do Estado, e
se focar em mudanças individuais, é possível se separar de projetos de poderes políticos e ideológicos.
Esse é um erro comum entre evangélicos. Thomas Moore descreve bem o problema: “presume-se que as
pessoas, quando libertadas dos efeitos opressivos do pecado em suas vidas, serão capazes de construir
uma sociedade e uma cultura mais justa”. Mas, como vimos, esse movimento ainda pode ser parte de um
projeto político que inclui até mesmo a violência em sua prática.
De forma geral, portanto, os direitos humanos em sua construção moderna, por implicação a DUDH
também, têm suas origens culturais no cristianismo ocidental, especialmente no protestantismo inglês
e estadunidense, e no secularismo humanista ocidental. Existem, como veremos na próxima edição da
ABBA-PAI, valores e ideais fundamentais dos direito humanos e da DUDH que não são exclusivos dessa
origem, ainda que tenham perpassado por ela. Mas antes de vermos essas fontes culturais diferentes,
é necessário concluir este tópico sendo explícito a respeito de uma característica crucial dessa origem
cultural ocidental. Diante do que se pode ver historicamente, em todas as tradições dos direitos humanos,
anteriores à DUDH, existe uma relação com certas estruturas políticas e ideologias. Parece razoável dizer
que, ainda mais do que os valores e ideais, a marca ocidental da origem cultural dos direitos humanos
está na forma política de implementação desses ideais e valores como imposição, muitas vezes, violenta
a grupos de status minoritário dentro dessa estrutura. Essa implementação política, sempre de cima
para baixo, muitas vezes ganha um caráter opressor, colonizador e universalizante. A DUDH, como
vimos na última edição da ABBA-PAI e brevemente acima, não carrega essa característica, trabalhando
fora das estruturas políticas e a partir da perspectiva da experiência básica da família e dos próprios
grupos oprimidos.
Para cristãos interessados em direitos humanos, essa diferença é de suma importância, por causa
da típica confusão entre cristianismo e cultura ocidental, especialmente quando tivermos que lidar com
a relação entre direitos humanos, a fé bíblica e a missão cristã, numa futura edição da ABBA-PAI. A partir
dessa consciência, podemos concluir este tópico com uma fala de Eleanor Roosevelt (1884–1962), a
única mulher da comissão que elaborou e aprovou a DUDH, e que se identificava como cristã:
"Onde se dá o começo dos direitos humanos? Em pequenos lugares, perto de casa—
tão perto e pequenos que não podem ser vistos em quaisquer mapas do mundo.
Contudo eles são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que se vive, a escola ou
universidade onde se estuda, a fábrica ou a fazenda onde se trabalha. Tais são os
lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de
oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos
tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a
organização do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos
em vão pelo progresso no mundo maior."
CONCLUSÃO
A citação de Eleanor Roosevelt é útil para esclarecermos pontos importantes sobre direitos humanos,
Estado e influências culturais como conclusão desta edição. Para muitos, a ênfase nos “pequenos
lugares”, nesses contextos menores onde se dá a vida cotidiana das pessoas, pode levar a implicações
erradas sobre questões mais estruturais, culturais e o papel do Estado em tudo o que envolve os direitos
humanos. Para alguns, talvez, essa ênfase seja benéfica, porque o Estado é um potencial opressor,
portanto, violador dos direitos humanos. Para outros, talvez, a ênfase seja maléfica, porque não responde
aos problemas estruturais que estão por trás de muitas violações de direitos humanos. Contudo, essa
ênfase não tem o objetivo de impedir a ação do Estado em favor dos direitos humanos e nem de ignorar
problemas estruturais. Essa ênfase é uma resposta aos abusos de poder do Estado na violação dos
direitos humanos e ao ímpeto universalizante e imperialista de valores culturais ocidentais, às vezes
de caráter cristão, que violam a liberdade e agência das diversas comunidades humanas de determinar
o que é bom para si mesmas. Assim, articular os direitos humanos a partir desses “pequenos lugares”,
e tê-los como objetivo final dos benefícios dos direitos humanos, é uma forma de qualificar a ação do
Estado para garantir os direitos humanos e estabelecer a relação adequada entre diversas culturas e
grupos sociais numa sociedade global e plural.
Uma conclusão adequada, como forma de resumir o que podemos aprender dos fundamentos
culturais dos direitos humanos, é considerar relações de poder. Não pode haver direitos humanos
quando existe imposição de valores e práticas “de cima para baixo”. No Brasil, conforme refletido em sua
legislação, como vimos na última edição da ABBA-PAI, o Estado garante direitos civis e humanos a partir
de valores e práticas que emergem da realidade particular de comunidades, famílias e indivíduos. Para
nós cristãos, como veremos numa futura edição sobre fé cristã, missão e direitos humanos, a ênfase nos
“lugares pequenos” nos força a dois reconhecimentos: (1) na história, o cristianismo se confunde com
a cultura ocidental em suas aspirações universalizantes, que são, na verdade, imperialistas, impondo
valores de uma cultura particular sobre outras; (2) os direitos humanos e a fé cristã, para avançarem,
dependem da valorizam da diversidade cultural, enquanto mantêm certos valores universais que são
preenchidos por expressões culturais e práticas particulares de diversos grupos sociais, famílias e
indivíduos em suas experiências particulares.
Na próxima edição, daremos um importante passo para trás que vai nos ajudar nesses dois
reconhecimentos. Falaremos sobre direitos humanos em culturas vizinhas e contemporâneas ao antigo
Israel. Isso nos fará perceber que muitos valores dos direitos humanos não são exclusivamente cristãos
ou ocidentais e que muitos desses valores que encontramos na Bíblia são compartilhados por essas
outras culturas.
- EQUIPE ABBA
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