A importância do Brincar

Introdução

Alguns dias atrás eu estava aguardando ser atendida em uma clínica, juntamente com outras pessoas igualmente impacientes com a demora. No nosso meio havia uma garotinha, de no máximo 3 anos de idade, que brincava e sorria como se estivesse em um parque. Eu a observava com admiração, e pensava, como é bom ser criança. Para aquela menininha o ambiente não a reprimia de expressar e ser, de brincar, imaginar, fantasiar, rir, criar, e movimentar-se, pois, fazia parte de quem ela era; inventar maneiras divertidas para se ocupar surgia naturalmente, sem ninguém ter que ensiná-la.

O brincar é inerente, não só ao ser humano, mas ao reino animal também. Quem nunca parou para olhar animais brincando? Congelamos no tempo ao assistir as interações divertidas e brincalhonas deles, e nos surpreendemos com tamanha agilidade, inteligência, e humor que demonstram ao brincarem.

Infelizmente, também observamos as consequências negativas que a privação do brincar causa naqueles que viveram essa realidade. Por exemplo, estudos mostram que bebês e crianças que não tiveram suas necessidades básicas atendidas, que não tiveram oportunidade de crescerem em um lar saudável cheio de amor, aceitação, estímulos, em um ambiente seguro e afetuoso, acabam tendo deficiências severas um muitos aspectos do seu desenvolvimento, como o social, cognitivo, neurobiológico, físico, comportamental, e emocional. Essas crianças, por não terem recebido amor, cuidado, e proteção, acabam não tendo condições de efetivarem ações que resultam de uma base segura, como brincar, por exemplo. Por isso, é comum que bebês, crianças, adolescentes, e adultos que passaram por traumas e violações de direito, manifestem comportamentos e emoções atípicas. Quando assistimos uma criança sentada isolada e cabisbaixa, podemos inferir que algo não está bem, quando observamos um bebê passar horas sem chorar, apático, ou sem expressar qualquer reação, deduzimos que algo esteja errado; ou um adolescente que não sai do quarto por dias, ou um adulto que trabalha sem parar não deixando tempo para si ou para os outros, ou ainda a pessoa idosa que já não tem vontade de comer, cuidar da sua higiene, ou conversar. Esses são apenas alguns exemplos de comportamentos que nos fazem concluir que algo não vai bem na vida dessas pessoas, e que o brincar (descobrir, criar, esperançar, aventurar, regozijar, conquistar, realizar, surpreender, alegrar etc.) já não faz parte de suas rotinas.

Dr. Stuart Brown, fundador do Instituto Nacional Do Brincar (National Institute For Play- NIFP), educa organizações, corporações, universidades, e criadores de políticas públicas sobre a importância do brincar nas vidas das pessoas, e as sérias consequências de negligenciarmos a brincadeira. Meu objetivo nesse texto é compartilhar resumidamente alguns pontos importantes mencionados por ele em um dos seus manuscritos.

Por que brincar é importante

Cria e fortalece conexões neurais. A brincadeira é o veículo mais ágil quando queremos promover novas conexões cerebrais. Através do lúdico e de interações que geram emoções prazerosas, novas sinapses são criadas e outras são fortalecidas, neurotransmissores, como dopamina, são liberados, proporcionando satisfação e bem-estar. Através do brincar, aprendemos sobre nós mesmos, o mundo, e o meio.

É interessante pensar que, quando um bebê nasce, ele passa a ser o centro das atenções. Seus cuidadores passam os primeiros dias contemplando cada detalhe por horas, embalando, acariciando, cantando, cuidando, e fazendo tudo por ele. Os cuidadores e familiares, passam horas brincando e interagindo, conversando, massageando, embalando, alimentando, e providenciando amor, carinho e aconchego. Em poucas semanas os adultos passam a brincar de formas variadas e em todos os lugares. Essas milhares de interações acontecem porque os adultos estão sintonizados e comprometidos com esse serzinho. Porém, esse impulso quase que magnético que o cuidador tem de saciar as necessidades e oferecer estímulos faz parte de sermos humanos. O bebê precisa que seja assim, ele precisa receber todos os estímulos necessários para que seu cérebro se desenvolva, e ele cresça de forma saudável. Somos atraídos ao rosto do bebê e o bebê é naturalmente atraído por rostos humanos. Devido essas milhares de interações sintonizadas e prazerosas é que o bebê vai construindo o apego seguro e o vínculo com seus cuidadores, e pessoas do seu cotidiano, e ao mesmo tempo vai desenvolvendo cada área do seu cérebro, como a linguagem, coordenação, habilidades sociais, habilidades cognitivas, habilidades emocionais, e, se tornando alguém capaz de confiar, se relacionar, e explorar o mundo a sua volta. 

Facilita o aprendizado e funções executivas. Através das milhares e variadas interações do bebê/criança com o seu meio, ele vai adquirindo todas as habilidades necessárias para ter êxito na sua vida. Por exemplo, através do jogo e das brincadeiras, a criança aprende sobre autocontrole, regulação das emoções, flexibilidade, justiça, regras, aprende a ter foco e atenção, respeito, valores de vida, empatia, cooperação, trabalhar em equipe, responsabilidade, esperar a vez, e inúmeras outras habilidades tão essenciais para uma vida de sucesso (Kohlberg, 2008).  Uma pesquisadora chamada Elena Bodrova e seus colegas (2013), observaram que através das brincadeiras as crianças aprendem a postergar gratificação, pois assumem um papel a ser desempenhado dentro das regras da brincadeira, procrastinando assim, sua gratificação imediata. Precisamos oferecer experiências positivas, e interações divertidas em todas as fases, mas primordialmente na primeira infância, porque nessa idade está sendo formado não somente sua identidade e personalidade, mas também solidificando as estruturas cerebrais para desenvolverem suas diferentes funções. A Primeira infância é como o alicerce de uma casa, se esse for bem edificado, a casa pode até enfrentar intempéries, mas não sucumbirá.

A brincadeira proporciona relacionamentos, reduz o estresse, e desenvolve habilidades físicas.  De acordo com Singer, Golinkoff, and Hirsh-Pasek 2006, as brincadeiras estimulam a parte do cérebro responsável pelas habilidades sociais tão importantes para desenvolvimento e manutenção de amizades e relacionamentos saudáveis. Ter amigos é crucial em todas as idades; sem amigos o indivíduo viveria uma vida solitária e triste. Ainda, quando brincamos, o cérebro libera endorfinas que possuem um efeito calmante. De fato, quando estamos realizando uma atividade prazerosa, costumamos dizer que não vemos o tempo passar, isso acontece porque nosso cérebro se encontra no estado de satisfação, de calma, de contentamento. Também, ao nos movimentarmos com o intuito de diversão, como em esportes, jogos, hobbies, exercícios, e brincadeiras, ou qualquer outra atividade que achamos prazerosa, mas que exige movimento, estamos beneficiando nossa saúde física e mental. Pessoas que por escolha própria são ativas e estão sempre em movimento, tendem a ter não somente longevidade de vida, mas também qualidade de vida, o que torna a pessoa mais feliz consigo mesma. 

Definição, por que nós brincamos

De acordo com Eberle 2014, podemos definir o brincar como ancestral, voluntário, episódios prazerosos, ou eventos que nós humanos e outras espécies se engajam por prazer e ao fazê-lo, fortalecemos nossos músculos, instruímos nossas habilidades sociais, minimizamos a agressividade, liberamos o estresse, aprofundamos nossas emoções positivas, e promovemos o equilíbrio. De forma geral e simples, brincamos porque nos sentimos bem quando fazemos, é prazeroso, gratificante e satisfatório. Eberle afirma que o brincar possui seis elementos que se manifestam em um continuum um após o outro: antecipação, que prossegue para surpresa, que gera prazer, prazer nos mantém engajados na brincadeira e conduz ao entendimento e aprendizado, fortalecendo a mente, o corpo, e formando o caráter; a força de caráter gera equilíbrio e esse equilíbrio nos motiva a continuarmos a brincar. O jogo, o lúdico, o brincar só é verdadeiro quando a pessoa não está em um estado de medo ou ansiedade. Logo, quando um indivíduo está vivenciando violações de direito como negligência ou abusos (físicos, mentais, sociais), ameaças, em um estado de ressentimento, angústia, luto, depressão, raiva, ele não consegue se interessar pelo brincar, seja ele um esporte, hobbie, música, leitura, arte, culinária, ou qualquer outra atividade que, em uma situação normal, lhe daria prazer. Infelizmente, estudos mostram que quando o ser humano é privado do brincar, principalmente na primeira infância, ele sofre várias consequências, uma delas é a diminuição da massa cerebral, diminuição das conexões neurais, e deficiências em inúmeras áreas, que persistirão, caso não haja intervenção, por toda a vida (Brown, F. e Webb 2005, 143).

Alguns estilos comuns de brincar

Todos nós, ao longo dos anos, vamos desenvolvendo preferências em relação ao brincar. Vamos escolhendo certas brincadeiras, enquanto deixamos de participar em outras. Isso é normal e acontece porque cada indivíduo é único e faz escolhas de acordo com sua personalidade, vivências, oportunidades, situação, características, experiências, cultura, geografia etc. Brown, o fundador do Instituto Nacional do Brincar, realizou milhares de entrevistas e fez observações para categorizar 8 tipos de estilos de brincadeiras as quais as pessoas dão maior preferência e até escolhem podem escolher profissões baseadas nesses estilos pessoais. São esses: colecionador, competidor, criador/artista, diretor, explorador, humorista, o movimentador/ kinestésico, e o contador de histórias.

Colecionador – Colecionar qualquer coisa é um tipo de brincadeira. A pessoas podem colecionar objetos (pedras, selos, canetas, carros, bonecas, imãs, antiguidades, papel de carta, figurinhas etc.), ou experiências (viagens, aprender idiomas, andar em montanhas-russas etc.); não existe limite do que uma pessoa pode colecionar por diversão e prazer.

Competidor – esses se divertem através de buscarem competição consigo mesmo (superando seus próprios limites), ou com outras pessoas, ou podem competir sozinhos ou em grupo. Novamente, nessa categoria existem milhares de competidores, podendo ir desde a pessoa que quer estar sempre na frente no mercado com suas descobertas, o chef que quer ser conhecido pela sua melhor culinária, os times esportivos que sonham em serem os melhores do mundo, o gamer que não para de jogar até vencer o oponente desconhecido, ou passar para a próxima fase etc.

O Criador/ Artista – a pessoa que busca diversão através desse estilo gosta de deslumbrar seu espectador, ou a si próprio. Aqui se encaixam desde o arquiteto que projeta um edifício, ao pintor, escultor, músico, poetas, fotógrafos, paisagistas, escritores, e inventores etc.

O Diretor – esses escolhem se divertir através do planejamento e execução das mais variadas atividades. Eles obtêm prazer em entregar um serviço. Muitos são estrategistas, empresários, políticos, apresentadores etc.

O Explorador – a arte de explorar o mundo está enraizada em todos os seres humanos e animais. Ao nascer já começamos a explorar o mundo à nossa volta. Essa característica é comum a todos, porém, algumas pessoas desenvolvem um gosto particular por explorar e descobrir. É prazeroso para esses experimentar, desmontar, misturar, construir, inventar. O brincar para indivíduos com esse estilo pode ser através de passar horas montando lego, ou misturando elementos até descobrirem vacinas e remédios; podem ser pesquisadores, cientistas, comentaristas, dentre outros.

O Humorista/ Comediante – Esses se divertem através de provocarem o riso nos outros e conseguem rir sozinhos, pois estão sempre procurando o humor em tudo. São aqueles que tornam a vida mais engraçada, são agradáveis, ajudam a desestressar o ambiente com sutileza e leveza. Esses amam se divertir através de divertirem os outros. 

O movimentador/ Kinestésico – Esse estilo busca movimentos precisos, interessantes, buscam por experiências sensoriais. Por exemplo: escaladores, ginastas, dançarinos, skatistas, jogadores de golfe etc.

Contador de Histórias – Esse estilo usa da imaginação para obter satisfação e prazer. Podem ser roteiristas, escritores, professores, artistas, criadores, qualquer atividade que usa a imaginação para desenvolver o objeto de sua brincadeira.

Conclusão

Em um primeiro momento, podemos pensar que a brincadeira não é algo importante. Talvez alguns até creiam ser importante para as crianças, mas não para os adultos. Nesse artigo aprendemos que o brincar é essencial em todas as fases da vida. O nosso cérebro possui uma área conhecida como “Play Circuit”, uma área que é ativada quando nos engajamos em atividades que nos dão prazer; essa área também está relacionada com a gratificação. Consequentemente, quanto mais essa área é utilizada, mais nos motivamos para repetirmos as ações que geram sensações de satisfação. Ainda, vimos que existem milhares de maneiras que alguém pode se divertir, e que cada pessoa é única em como ela irá alcançar esses momentos de lazer e satisfação, os quais são indispensáveis para a saúde física, mental, social, cognitiva, e emocional do ser humano. Desde o nascimento até a velhice, sem distinção, todos nós precisamos ter oportunidade para escolhermos como usaremos o tempo para revigoramos nosso corpo, nossa alma, e nosso espírito. Como sociedade, precisamos valorizar e incentivar o brincar, o lazer, o lúdico, o jogo, em todas as esferas, do menor ao maior, porque tais atividades promovem habilidades fundamentais para o bom convívio em comunidade, e oferecem caminhos mais efetivos para o aprendizado não somente acadêmico, mas também o aprendizado de valores fundamentais para a formação de uma cidadania ética, moral, justa, que respeita e ama o seu próximo.

Raquel Hatcher 

Líder da ABBA, coordenadora dos serviços: Alicerce - Formação e consultoria e Serviço de Acolhimento Familiar Pérolas Jabaquara -SP

Psicóloga formada pela Universidade Luterana do Brasil.  Mestrado e doutorado em psicologia clínica pela Regent University, Virginia, EUA. Representante e treinadora em "Trauma Informed Care” pela organização americana Trauma Free Word e treinadora licenciada em TBRI pelo Karyn Purvis Institute of Child Development,, Texas, EUA

Bibliografia

Bodrova, Elena; Carrie, Germeroth; e Deborah, J. Leong. “Play and Self Regulation: Lessons From Vygotsky.” American Journal Of Play 6, no.1 (2013): 111-23.

Brown, Fraser and Sophie Webb. “Children Without Play”. The Journal of Education 35,no1 (2005): 139-58.

Eberle, Socott G.’ Brown, Stuart., et all. "The Power of Play: Losing And Finding Ourselves Through Everyday Play." (“National Institute for Play”) The National institute of Play; Carmel Valley, CA, 2024.

Eberle, Scott G. “What’s not Play?”: A Meditation” In The Handbook of Study of Play 2, edited by James E. Johnson, Scott G. Eberle, Thomas S. Henricks, and David Kuschner, 489. New York: Rowan & Littlefield, 2015a.

Kohlberg, Lawrence. “The Development of Children’s Orientations Toward a Moral Order”. Human Development 51, no.1 (2008): 8-20.

Singer, D., R.M. Golinkoff, e K. Hirsh-Pasek. “Play=Learning: How Play Motivates and Enhances Children’s Cognitive and Social-Emotional Grown”. Oxford, England: Oxford University Press, 2006.

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