
Lidando com os traumas na vida adulta
Introdução
Considerando o fácil acesso à informação que nossa sociedade tem nos dias atuais e o crescente interesse em temáticas no âmbito da saúde mental, é possível que você já tenha ouvido falar sobre trauma. Muito provavelmente você até tenha usado essa palavra referindo-se a um evento específico, desejando expressar o nível de impacto que algo ou alguém lhe causou.
Temas relacionados à saúde mental têm ganhado maior visibilidade, principalmente através das redes sociais, com influenciadores(as) abordando essas temáticas, inclusive expondo suas próprias experiências de vida e colocando assuntos como depressão, ansiedade, pânico ou trauma em discussão. (Marques, 2020).
Acredito que ao deparar-se com essa exposição, possivelmente em algum momento você tenha se identificado. Palavras, comportamentos e sintomas ecoaram dentro de você, com uma expressão aproximada de: “Nossa eu passo por isso também” ou “É exatamente assim que me sinto” e ainda: “Eu já vivi a mesma coisa”.
Diante desse cenário, quero convidar o leitor a um nível mais profundo de compreensão sobre o trauma, abordando aspectos de sua origem, seu impacto nas emoções, na identidade e na vida social e sugerir ferramentas auxiliares para lidar com essa condição.
O objetivo é promover um melhor conhecimento do tema, oferecendo informação assertiva que contribua para mais saúde em sua vida e seus relacionamentos.
O que é trauma?
Vamos a um pouco de definição. Trauma é uma palavra de origem grega: Do grego traûma, traumatos, traumatismós, que significa “ferida”, “dano” ou “avaria”. (Dicionário Etimológico: etimologia e origem das palavras. 2008 - 2025 7Graus.).
Essa palavra começou primariamente a ser utilizada no contexto medicinal tratando-se de lesões ou fraturas geradas por um agente externo. (Merriam Webster).
Com o tempo a palavra passou a fazer parte do contexto psicológico, sendo utilizada para descrever as respostas emocionais desencadeadas a partir de eventos e situações adversas que interferem na estrutura psíquica e na construção da identidade de determinado sujeito. (Freud, 1920/2011).
Compreende-se que o ser humano possui uma base psicoemocional que sustenta sua identidade. Essa por sua vez, torna-se a expressão do sujeito no mundo, moldando suas crenças, formando suas convicções e regulando seus vínculos. A compreensão de si mesmo impacta diretamente a tomada de decisões e norteia as escolhas que fazemos. (Beck, 1997).
Quando falamos em trauma, geralmente pensamos em experiências intensas como abuso físico, psicológico ou sexual; assaltos, sequestros, violências, acidentes ou desastres naturais.
De fato, esses eventos têm grande potencial traumático, uma vez que provocam extremo estresse e desorganização emocional. (American Psychiatric Association, 2014).
Porém existem circunstâncias mais frequentes na vida cotidiana com potencial de interferir na construção da identidade e comprometer a constituição psíquica, especialmente quando ocorrem na infância, fase crucial em que os alicerces da personalidade e da organização interna do self estão em formação.
(Neimeyer, 2006).
Sendo assim, considera-se trauma psicológico qualquer situação, evento ou experiência que crie uma “fratura” ou “ferida” na estrutura emocional subjetiva de alguém, gerando marcas profundas que poderão ser incorporadas à sua organização interna e manifestadas ao longo da vida adulta.
Essas marcas manifestam-se, por exemplo, em vínculos fragilizados, na insegurança diante de desafios da vida ou no controle excessivo como mecanismo de autoproteção, prevenindo-se de experimentar o trauma novamente. (Bowlby, 1982).
Casas antigas e prédios novos
Imagine uma bela casa, antiga, onde uma família viveu por muitos anos e construiu muitas memórias.
Agora imagine que essa casa está localizada em um bairro movimentado e em ascensão comercial.
Um empresário famoso que tem construído um verdadeiro império na região, está de olho nessa casa e após várias tentativas finalmente deu o lance certo e conseguiu efetivar a compra. Seus planos não são de fins residenciais, mas de construir um prédio empresarial.
O que você acha que ele fará primeiro com a casa? Construirá o prédio sobre ela? Com certeza não. A casa não suportaria tal estrutura. O passo seguinte seria demoli-la.
Com o terreno vazio agora sim, ele construirá o prédio nesse solo, correto? Também não! Antes que um novo edifício seja construído, é necessário avaliar o solo, fortalecer e desenvolver novos alicerces.
Não estou falando sobre construção à toa. Em minha experiência como psicóloga clínica venho usando essa metáfora para exemplificar o processo de tratamento em psicoterapia, pois no contexto da prática clínica, observa-se comumente adultos vivendo emocionalmente apenas como se estivessem reagindo a seu passado, mesmo quando há diante deles novas experiências.
Em nossas jornadas de vida, somos como essa casa: carregamos histórias, memórias emocionais e feridas que compõem a estrutura subjetiva formada desde a infância.
Muitos desejam se tornar prédios sólidos e elevados – pessoas emocionalmente saudáveis –, porém querem fazer isso em cima da casa, ou seja, sem antes avaliar suas bases.
Lidando com o trauma
Na vida adulta o efeito dos traumas não elaborados manifesta-se sutilmente, porém seu impacto é persistente.
Algumas das expressões desse impacto aparecem em forma de medos irracionais ou fobias, controle excessivo, autoritarismo, agressividade, perfeccionismo limitante, compulsões em geral ou dificuldade em se relacionar. É importante destacar que esses padrões não são intencionais e com frequência as pessoas que os vivenciam não os associam às suas experiências traumáticas.
Portanto compreendendo que os traumas podem estar enraizados em nossas histórias de vida, potencialmente funcionando como pano de fundo para decisões, escolhas, desregulando emoções e interferindo nos relacionamentos, torna-se essencial iniciar um processo de ressignificação. Esse processo passa por algumas etapas fundamentais para a construção de um novo “prédio” emocional.
➢ Conscientização
Geralmente, quem procura por psicoterapia busca alívio do sofrimento emocional presente. De forma geral não sabe onde esse sofrimento começou ou suas raízes.
Compreende-se que o comportamento humano é resultante das convicções, que por sua vez são formadas mediante as crenças. Beck (1997) e Ellis (1955). Crenças são estruturas cognitivas construídas mediante leitura subjetiva do indivíduo às experiências adquiridas, gerando como mencionado, suas convicções e sua visão de mundo.
Em psicoterapia ao tomar consciência dessas crenças e seus eventos correlacionados, o sujeito pode identificar pontos traumáticos que influenciam sua forma de interpretar o mundo circundante. Esse passo abre caminho para o processo de ressignificação.
➢ Exemplificando
Considere a seguinte história fictícia criada com apoio de inteligência artificial:
Aurora cresceu em um lar fortemente marcado por instabilidade emocional. Seu pai era autoritário e agressivo, e sua mãe, submissa e emocionalmente indisponível. Desde cedo, Aurora aprendeu que expressar sentimentos era perigoso. Quando chorava, ouvia frases como:
"Engole esse choro!"
"Você só quer chamar atenção!"
Além disso, Aurora foi responsabilizada por coisas que não estavam sob seu controle. Se o pai chegava irritado do trabalho, qualquer pequeno erro — um copo fora do lugar, um caderno esquecido na sala — podia desencadear uma explosão. Muitas vezes, a mãe dizia coisas como:
"Você precisa se comportar melhor para que seu pai não fique nervoso."
Ela aprendeu a agradar, se esconder e temer desapontar.
Na vida adulta, tornou-se competente, mas extremamente perfeccionista e autocrítica.No trabalho, evitava liderar reuniões ou expressar opiniões contrárias, com medo de represálias.
Nos relacionamentos, se envolvia com parceiros controladores. Gentilezas geravam desconfiança. Tinha dificuldade em dizer “não” e raramente se colocava em primeiro lugar, pois acreditava que, para ser amada, precisava se anular.
➢ Desconstrução
Retomando nossa metáfora da casa, antes que algo novo seja empregado, é necessário um processo de desconstrução. Isso implica em permitir-se revisar e transformar convicções que foram formadas sob o impacto do trauma, pois essas muitas vezes resultam em uma configuração psíquica disfuncional que tende a enredar a pessoa em uma série de frustrações no contexto pessoal, social, físico e até espiritual. (Silva & Teixeira, 2020).
Em nossa história fictícia, Aurora a partir de suas experiências, internalizou algumas crenças disfuncionais, como:
"Meus sentimentos não importam."
"Se eu errar, serei punida ou rejeitada."
"Amor depende de eu agradar aos outros."
Em ambiente terapêutico e com o uso de técnicas apropriadas, Aurora permite-se iniciar um processo de desconstrução dessas ideias.
➢ Luto
Compreende-se luto nesse contexto como o sentimento de perda ou ausência, o sofrimento gerado a partir da mudança abrupta e não desejada. Segundo Freud (1917/2011), o luto é compreendido como processo psíquico relevante para a elaboração da ausência de um objeto no qual foi transferido afeto.
Dessa forma, o sujeito que experimenta o início do processo de desconstrução na formação de sua identidade emocional, vivencia a melancolia advinda da sensação de perda — nesse caso, a perda de suas antigas convicções que, embora disfuncionais, ofereciam a ilusão de segurança. (Bowlby, 1982).
➢ Elaboração/ Ressignificação
Passando por estágios de conscientização, desconstrução e luto, torna-se possível ao sujeito elaborar seus traumas. Essa elaboração refere-se à auto regulação, que proporciona ao sujeito uma perspectiva ampliada, verossímil, empática e madura de sua história de vida. (Frankl, 2009). Dessa forma, percebe
se um sujeito é capaz de ser interdependente em seu meio social, munido de ferramentas de apoio emocional que lhe permitem administrar suas emoções na vida cotidiana, não mais sendo refém de suas dores não elaboradas.
Nas fases mais avançadas do processo psicoterapêutico, é possível observar um sujeito emocionalmente mais maduro, capaz de recorrer a recursos como o estabelecimento de limites saudáveis em suas relações, a autorregulação emocional e a construção de vínculos afetivos mais equilibrados e seguros. Nesse estágio, nota-se o fortalecimento da autoestima, que promove maior liberdade interna e autenticidade nas interações sociais.
CONCLUSION
Ao final dessa jornada de compreensão, entendemos que o trauma característico como fratura emocional, uma vez não tratado continua a perpetuar-se gerando consequentemente mais feridas, deixando marcas nos pensamentos, comportamentos e relacionamentos. Sendo assim torna-se fundamental conhecer o trauma em suas origens, impactos e manifestações na vida adulta para a promoção da saúde psicossocial.
Apesar de seu potencial de dor, entendemos que quando o sujeito se acolhe permitindo-se com coragem revisitar sua história inicia-se um processo de transformação a partir da conscientização, da desconstrução de crenças disfuncionais e da ressignificação de experiências, resultando em um indivíduo capaz de reconhecer seu valor, com uma auto estima equilibrada que contribui positivamente com seu meio através de vínculos saudáveis.
Portanto o sofrimento antes fruto de uma ferida aberta, agora vira uma cicatriz fonte de aprendizado.

Aline Cavaleri
Psicóloga com 8 anos de experiência clínica e especialização em aconselhamento cristão. Nos últimos 6 anos, tem se dedicado à atuação como psicóloga missionária na organização ABBA, onde aplica seus conhecimentos para oferecer suporte psicológico e espiritual. Sua trajetória profissional reflete um compromisso profundo com o bem-estar emocional e espiritual de seus pacientes.