Maio Laranja serve para nos conscientizar e combater a violência contra crianças e adolescentes no Brasil, mais especificamente casos de abuso e exploração sexual. Nesse contexto, vale a pena pensar sobre o que está em jogo quando falamos sobre crianças em situação de risco e vulnerabilidade social. Como demonstram as estatísticas de violência contra a infância brasileira, estamos lidando com uma questão de vida e morte. Ainda que para muita gente isso pareça muito dramático ou exagerado, não é. Ontem (19/05), por exemplo, vimos, mais uma vez, a morte de um garoto de 14 anos, baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro. João Pedro estava em casa, brincando! Não estava envolvido com o tráfico, era evangélico, e a morte o tomou ou foi lançada contra ele por diversos fatores que nada têm a ver com suas decisões na vida. Nesse devocional, o leitor poderá entender que quando falamos de situação de risco e vulnerabilidade social estamos falando de morte e vida, assim como podemos ver na Bíblia.
Vida e morte, na Bíblia e hoje, não podem ser medidas pelos batimentos cardíacos ou a falta deles. É possível estar vivo e ainda experimentar a morte. É aqui que entra a experiência e a situação de risco e vulnerabilidade social. No portfólio da ABBA, que você pode acessar aqui, desenvolvemos uma descrição dessa condição e eu vou resumir algumas coisas aqui. Para muitos é somente uma questão de pobreza e vida nas favelas, mas é muito mais do que isso.
As duas perguntas que precisamos fazer são: Vulnerável a quê? Risco de quê? A vulnerabilidade social significa uma condição de susceptibilidade latente ao ambiente social em que se vive. É claro que todos nós somos susceptíveis ao nosso meio social. Existe uma diferença, porém, entre meios que impõem maiores dificuldades para superá-los e, meios menos desafiadores. Para piorar a situação, meios mais desafiadores tendem a ser mais inóspitos para o desenvolvimento humano. Em outras palavras, o meio social afeta o desenvolvimento de nossos recursos emocionais e psicológicos para adquirirmos as capacidades necessárias para superar os desafios impostos por ele. Esses desafios têm a ver com escassez de recursos materiais, mas também com um meio social que impõe escassez de recursos internos. Essa é uma situação de vulnerabilidade social. Quem está em tal condição tem pouquíssimas oportunidades e escassas possibilidades de adquirir as habilidades necessárias para se ter uma vida diferente daquela que se vive no meio em que se está inserido.
Qual seria o risco, então? Trata-se do risco de experimentar situações que as coloquem mais próximas do colapso financeiro, familiar, emocional e psicológico, podendo chegar ao ponto do risco de morte. Esse colapso se experimenta em doenças, marginalização, drogadição, desestrutura familiar, fome, institucionalização, violência, etc. Num espectro, o risco pode variar entre uma condição que limita seriamente o pleno desenvolvimento humano até o ponto em que se tem o próprio risco de morte. Dentro desse espectro, o que se coloca entre a pessoa e a experiência desse colapso a perda de emprego, um acidente doméstico, uma gravidez inesperada, um divórcio, etc. Muitas vezes trata-se de uma situação que poderia ser superada sem grandes dificuldades caso houvesse mais recursos externos e internos. Para alguns, a vulnerabilidade é profunda o suficiente para que apenas um imprevisto os leve a experimentar os riscos citados acima. Para muitos, a morte cerceia sua vida de tal forma que basta uma pequena mudança para ceifá-la de vez. Ou, como no caso de João Pedro, basta viver em certo lugar, para que a morte atravessa sua porta e o atinja.
Tudo isso encontra algumas correspondências interessantes com a visão da Bíblia sobre Deus, a criação, a vida e a morte. O espectro entre situações que limitam o pleno desenvolvimento humano até situações de risco de morte poderia mudar para uma linguagem mais bíblica: vida, de um lado, e morte do outro. Deus é um Deus de vida, que cria um ambiente que gera e sustenta a vida, enquanto a ausência de Deus e suas ações criam um ambiente incapaz de gerar e sustentar a vida, portanto, um lugar de morte. Isso fica bem claro em Gênesis 1, que começa com um estado de vazio e deformidade, ou seja, um ambiente sem vida, descrito pela expressão hebraica תֹהוּ וָבֹהוּ (tohu vabohu), e é concluída com um estado vibrante com vida por todo lado.
O estado de morte, na Bíblia, não é necessariamente uma condição após o ser vivente dar seu último suspiro. Na verdade, é possível viver em estado de morte. Uma palavra importante no Antigo Testamento para o lugar de morte é שְׁאוֹל (sheol). Vejam Salmos 30.3: “Oh, SENHOR, você fez subir minha vida do Sheol, me conservou vivo para não descer à cova”. Ou, Salmos 88.3: “Minha vida é repleta de males, meu ser toca no Sheol”. Ou Salmos 116.3: “As armadilhas da morte me cercam, as angústias do Sheol se apoderam de mim”. Essas condições de vida descritas pela presença iminente do Sheol é uma ameaça à vida. O contexto de tais condições, geralmente, é de desordem social, violência e escassez de recursos. A presença do Sheol, portanto, é uma situação de risco e vulnerabilidade social.
Outra palavra hebraica importante aqui é מוֹת /מָוֶת (mot/ mavet). Trata-se do termo comum para morte. No entanto, a morte não é meramente um estado, pois ela tem certa personalidade. Tanto é que מוֹת (mot) é um termo que se refere a um deus da morte e do submundo nas mitologias do antigo Oriente Próximo. Para entender a morte como personalidade na tradição bíblica, temos um exemplo interessante em Jeremias 9.21: “Pois subiu [obviamente vindo do submundo] a morte [מָוֶת] pelas nossas janelas, entrando em nossas cidades, e arrancou crianças das ruas e jovens da praça”. Esse texto é bastante significativo por dois motivos. O primeiro é que a morte tem caráter ativo. Ela penetra a esfera da vida humana, especificamente a sociedade, a fim de arrancar a vida de pessoas e levá-las para o seu domínio. O segundo é que Jeremias destaca crianças e jovens como aqueles que primeiro são arrancados pela morte. Crianças e jovens, aqui, são um grupo de maior risco e vulnerabilidade social, algo que continua sendo a realidade em nosso contexto, como a morte de João Pedro deixa claro. Mais interessante ainda, é que o texto de Jeremias fala da morte entrando por nossas janelas. Em nosso contexto, a morte que alcança nossas crianças e adolescentes é uma ameaça que, na maioria dos casos, vem de dentro de suas próprias casas. A violência sofrida por crianças e adolescentes brasileiros é, na vasta maioria dos casos, perpetuada por seus familiares e conhecidos, no ambiente do lar. Mesmo quando isso não acontece, como no caso de João Pedro que foi baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro, estar em casa não significa ter segurança alguma.
Por outro lado, vamos ver como o Evangelho de João faz uso do termo vida. Um texto muito conhecido é João 10.10: “Eu vim para lhes dar vida, uma vida plena, que satisfaz” (NVT). Essa “vida abundante” e “vida eterna”, no Evangelho de João, está atrelada à revelação de quem Jesus é. O modo de revelação da identidade de Jesus como Filho e Deus encarnado se dá por vários episódios em que Jesus oferece suprimentos materiais em situações da necessidade humana: vinho (2.1-11), água (4.4-42) e pão (6.1-71). Mais interessante é que a oferta de elementos materiais por Jesus é mais do que isso. O próprio Jesus é “a água VIVA”, o “pão da VIDA”. Jesus oferece esses elementos materiais, mas ele mesmo é a dádiva oferecida. Há uma convergência aqui entre a realidade humana, material, física, e a realidade divina, espiritual. A vida é oferecida pelos elementos materiais que saciam as necessidades humanas, ou seja, aquilo que, de fato, sustenta o corpo humano. Mas como essa oferta é feita pela graça de Deus, no serviço de Jesus como a própria dádiva oferecida, esses elementos também resultam em vida abundante. A materialidade deixa de ser mera materialidade diante de quem a oferece como expressão da graça divina na comunhão com aquele que se revela como o próprio Deus. E João nos diz que todos aqueles que desfrutam desses elementos, recebendo a própria dádiva, que é Jesus, recebem o direito de se tornarem filhos de Deus (Jo 1.12). Jesus, a encarnação de Deus, é o Deus que dá vida, mesmo pelo simples ato de saciar as necessidades humanas daqueles que mais precisam.
Milhões de brasileiros, muitos deles crianças e adolescentes, vivem em situação de risco e vulnerabilidade social. Para eles, a morte é uma realidade diária, seja pela violência física e sexual infligida contra eles, ou pela escassez de recursos materiais e recursos internos. A morte quer arrancar suas vidas e o Sheol parece ser o ambiente em que vivem, como na descrição do salmista. Isso acontece quando um de seus conhecidos ou amigos é baleado, como aconteceu com o João Pedro; ou nas marcas de feridas purulentas que muitos carregam por falta de saneamento básico; ou no prato vazio, literalmente, ou de nutrientes, quando só têm miojo para comer; ou no córrego correndo como uma torrente ao lado de seu barraco; ou no soco que sua mãe leva do namorado; ou quando seu pai ou mãe os espancam; ou quando algum familiar ou conhecido os abusa sexualmente; ou quando o patrão atrasa o salário de seus pais; ou quando são deixados com vizinhos, ainda bebês, porque a mãe foi usar droga na rua; ou por ter sido simplesmente abandonado no hospital por sua mãe. Para todos esses, a igreja tem muito a oferecer. Como corpo de Cristo, podemos oferecer os recursos materiais e a proteção física que essas pessoas precisam para suprir suas necessidades, para dar-lhes o que precisam para viver. Mas como corpo de Cristo, devemos fazê-lo num ambiente de real encontro, de real revelação da dádiva divina, o próprio Jesus, que se manifesta nesse ato, nessa oferta, concedendo a essas pessoas a possibilidade de o receberem nesses elementos e terem vida abundante e serem chamados filhos e filhas de Deus.
Conhecimento de Deus
Teologia é a disciplina sobre o conhecimento de Deus. Para a maioria de nós, teologia significa ler, estudar, escrever, ou seja, se dedicar intelectualmente para buscar o conhecimento de Deus. Ainda que esse exercício intelectual tenha seu valor, não parece que no pensamento bíblico o conhecimento de Deus tenha a ver com isso.
O livro de Jeremias, diferente de outros livros proféticos, apresenta muito de seu conteúdo como um tipo de debate com outros profetas, escribas, e a elite sacerdotal de Judá que se encontrava no templo e no palácio de Jerusalém. Na prática, o debate é sobre se haveria salvação ou destruição para Judá e seu povo. De um lado, Jeremias profetiza que a destruição está à porta; do outro lado estão os outros profetas, escribas e sacerdotes, dizendo que Deus os salvaria. Mas no fundo desse debate no livro de Jeremias está uma questão muito profunda: o que é a verdade e como podemos conhecê-la?
Tanto a verdade quanto a falsidade, no decorrer do debate de Jeremias com seus oponentes, é mais do que uma questão de idéias e conceitos, ou seja, a verdade e a falsidade não são meras palavras. Trata-se, de fato, de uma questão sobre a vida verdadeira e a vida falsa. Um bom exemplo disso está na profecia de Jeremias no templo de Jerusalém no capítulo 7. Ele parece estar falando somente a respeito de palavras falsas quando diz: “Não confiem em palavras falsas, dizendo: ‘Templo do Senhor! Templo do Senhor! Este é o templo do Senhor!’” (v. 4 ). Mas vejam o que vem antes e o que vem depois: “Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: Corrijam a sua conduta e as suas ações, e eu os farei habitar neste lugar” (v. 3); “Mas se de fato emendarem os seus caminhos e as suas ações, se de fato praticarem a justiça, cada um com o seu próximo; se não oprimirem o estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramarem sangue inocente neste lugar, nem seguirem outros deuses para o próprio mal de vocês, eu os farei habitar neste lugar, na terra que dei aos pais de vocês, desde os tempos antigos e para sempre” (vv. 5-7). O que parece ter somente a ver com palavras, na verdade, é sobre um modo de vida. A falsidade das palavras é o resultado de uma vida falsa. Mas o que torna essa vida falsa? No versículo 8, Jeremias diz algo muito importante: “Eis que vocês confiam em palavras falsas, que não servem para nada”. O que torna uma vida falsa ou verdadeira é se esta tem algum benefício. Isso parece subjetivo e até pragmático demais, mas não é.
Aqui podemos começar a dar uma resposta para as duas perguntas fundamentais: o que é a verdade e como podemos conhecê-la? Uma parte da primeira resposta é que a verdade é algo que gera benefício. Com essa parte da resposta já sabemos que Jeremias não entende a verdade como uma ideia, uma essência, e sim como algo concreto sobre a vida.
Precisamos cavar um pouco mais para qualificar essa primeira parte da resposta. Na teologia, o conhecimento da verdade e o conhecimento de Deus são interdependentes, quando não são a mesma coisa. O mesmo acontece em Jeremias, mas não se trata de um conhecimento abstrato sobre a essência do ser divino. Trata-se de conhecer o modo de agir de Deus, sua justiça e seus mandamentos. Vejam essa comparação. No capítulo 5, Jeremias diz: “Eles nada sabem. Não conhecem os caminhos do Senhor, não entendem o que a justiça de Deus exige” (v. 4). Já no capítulo 9, temos um indício do que seja conhecer a Deus, seus caminhos, sua justiça e seus mandamentos. Jeremias diz o seguinte: “… me conhecer e saber que eu sou o Senhor e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor” (v. 24).
Assim, uma resposta provisória para nossas duas perguntas ficaria assim: A verdade é aquilo que traz algum benefício e nós a conhecemos atentando, percebendo, reconhecendo o modo de agir justo e misericordioso de Deus. Com esse fundamento, podemos tratar de um texto que compacta nossa discussão até aqui e nos encaminha para mais algumas qualificações fundamentais:
“Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me? declara o Senhor” (Jeremias 22.16).
Essa fala profética de Jeremias está apontando para a vida de Josias, rei de Judá, famoso pela renovação da aliança e observância da lei, conforme aparece em 1Reis 22-23. A profecia de Jeremias aqui é uma exortação ao filho de Josias, Jeoaquim, que rompeu com os caminhos de seu pai, e precedeu a derrota de Judá e a destruição de Jerusalém pelos babilônios.
As três partes desse versículo apontam exatamente para as três partes que venho tentando desenvolver até aqui: a verdade tem a ver com algo que traz algum bem (“tudo corria bem”); o conhecimento da verdade tem a ver com conhecer os caminhos de Deus (“não é isso que significa conhecer-me?”); e esse conhecimento é concreto e prático, e não está no nível das idéias e das essências (“ele defendeu a causa do pobre e do necessitado”). Mas a forma e o contexto dessa profecia vai nos ajudar a chegarmos numa conclusão mais acertada.
Primeiro, um fundamento importante que aparece nessa profecia é o termo “conhecimento” (hebraico, daʿat). Não é nenhum segredo que esse termo, assim como o verbo cognato yādaʿ, quando se refere a pessoas, não é sobre adquirir e processar informações. Conhecer alguém, aqui, significa ter um relacionamento profundo e um compromisso pessoal com o outro. É especialmente esse segundo elemento, o compromisso pessoal, que explica o motivo de o conhecimento de Deus não ter a ver com uma informação sobre sua essência, mas sobre seu modo de agir. Como seres humanos limitados, não temos acesso à essência do divino e nem é isso que Deus nos propõe. Nosso acesso à pessoa de Deus se dá na observação de seu relacionamento com a criação, em seu agir e caminhar. E nosso relacionamento com Deus se dá nessa ação e nesse caminho. É por isso que conhecer a Deus tem a ver com nosso relacionamento com ele. É, também, por isso que conhecê-lo e ter um relacionamento com ele se dá ao seguirmos o seu caminho, num compromisso prático de ações que correspondem ao seu modo de agir.
Segundo, um fundamento importante sobre os caminhos de Deus, ou seja, sobre quem ele é em relação à criação, aparece nesse texto. Na profecia de Jeremias, Josias conheceu a Deus porque ele defendeu a causa do pobre e do necessitado. Se seguirmos a lógica que estamos propondo aqui, então os caminhos de Deus têm a ver com a defesa da causa do pobre e do necessitado. Vejam como essa afirmação é verdadeira: “Cantem ao Senhor! Louvem ao Senhor! Porque ele salvou a vida do pobre das mãos dos malfeitores” (Jr 20.13). Percebam como um relacionamento pessoal com Deus aqui, mesmo no nível da adoração, está fundamentado em suas ações de justiça e misericórdia. Muito do que encontramos nas profecias de Jeremias, em sua disputa com seus oponentes sobre a salvação ou destruição de Judá, tem a ver com o modo como Deus se importa com os pobres e necessitados.
Terceiro, e por último, temos que pensar sobre como a verdade ou o conhecimento de Deus, em Jeremias, é definido por um resultado benéfico, ou seja, algo que gera benefícios. Esse texto de Jeremias 20.13 e o contexto de Jeremias 22.16 irão nos apontar para uma resposta. Temos dois detalhes importantes em Jeremias 20.13. O primeiro é que Deus deve ser louvado por salvar a VIDA do pobre. Então o conhecimento de Deus, e o que é a verdade, devem ter alguma coisa a ver com vida. O segundo é que a vida do pobre estava em risco por causa da ação de certas pessoas chamadas de malfeitoras. Com isso, podemos nos voltar para o contexto de Jeremias 22.16. Como foi dito, trata-se de uma exortação a Jeoaquim, filho de Josias. Se Josias conheceu a Deus por defender a causa do pobre e do necessitado, o que foi que Jeoaquim fez que demonstrou não conhecer a Deus? Jeremias diz o seguinte: “Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos, contrariando o direito! Que faz o seu próximo trabalhar de graça, sem lhe pagar o salário. Ai daquele que diz: ‘Edificarei para mim uma casa bem grande, com aposentos espaçosos.’ Então ele põe janelas na casa, forra as paredes com cedro, e a pinta de vermelho” (Jr 22.13-14).
Do ponto de vista de Jeoaquim, suas ações trazem benefício, não é mesmo? É um resultado bom, para ele, e para alguns poucos a sua volta. Contudo, não somente suas ações não trazem nada de bom para a multidão de pessoas que vivem debaixo de seu reinado, como suas ações são uma ameaça à vida dessas pessoas. O conhecimento de Deus, a verdade, não pode gerar injustiça e morte. O benefício gerado pela verdade pode ser definido como aquilo que é necessário para a vida de todos. O recurso básico para a vida é a água. Por isso, logo no começo do livro de Jeremias, a disputa entre verdade e falsidade, ou entre Deus e os ídolos das outras nações, é estabelecido a partir de uma metáfora envolvendo água: “abandonaram a mim, a fonte de água viva, e cavaram cisternas, cisternas rachadas, que não retêm as águas” (Jr 2.13). De certa forma, portanto, o benefício gerado pela verdade ou pelo conhecimento de Deus, é sobre a vida e o bem-estar de todos. Por isso a ênfase, em Jeremias, na questão da justiça aos pobres e necessitados contra malfeitores, ou opressores, como Jeoaquim, pois tais pessoas colocam a vida dos pobres e necessitados em risco. Em vez de gerar recursos para a vida de todos, gera escassez, insegurança, injustiça e morte.
Assim, podemos pensar porque o conhecimento de Deus está vinculado ao conhecimento da verdade, que está vinculado à justiça aos pobres e necessitados. A verdade tem a ver com como as coisas são, ou seja, com a realidade. Se o que conhecemos de Deus é que ele age com justiça, a fim de que haja vida, então ele deve ter criado a realidade de uma forma que siga essa lógica. É por isso que essa busca por sabedoria, força e riqueza (Jr 9.23), seguindo a lógica humana, causando injustiças que põe em risco a vida dos outros, é considerada por Jeremias como falsidade. Tal modo de viver no mundo não condiz com a realidade. O que condiz com a realidade é defender a causa dos pobres e necessitados, pois o mundo foi criado por aquele que age com “misericórdia, justiça e retidão na terra” (Jr 9.24). É por isso que a verdade, para Jeremias, é aquilo que resulta em algum bem. Esse bem é a vida de todos, especialmente daqueles que têm sua vida ameaçada.
Agora, portanto, podemos responder com mais exatidão as duas perguntas: o que é a verdade e como podemos conhecê-la? A verdade é tudo o que é capaz de gerar vida, especialmente aos que têm suas vidas mais ameaçadas. Podemos conhecer a verdade quando conhecemos a Deus e caminhamos com ele em seu compromisso de misericórdia, justiça e retidão na terra, pois é isso que gera vida. É por isso que Jeremias afirma: “Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me? declara o Senhor”.
Religião pura: Tiago 1.27
Com muita razão, a maioria de nós teme nos contaminarmos. Em circunstâncias como a que vivemos atualmente, nosso senso de que há perigos invisíveis se amplifica. Ainda que nós não estejamos acostumados com esse tipo de perigo num âmbito global, a história da humanidade é marcada por doenças contagiosas que ameaçavam a existência de comunidades, pequenas e grandes. É essa ameaça à vida que deu a esses inimigos invisíveis, mas muitas vezes com sintomas bem visíveis, o potencial de adentrar o imaginário e o vocabulário religioso. Contaminação, doenças e impurezas, como ameaça à vida de indivíduos e de comunidades, ganharam um novo significado. Para nós, cristãos, somos levados a pensar no livro de Levítico e todas as suas orientações sobre contaminação e impurezas. No antigo Israel, esse conceito de contaminação e impureza abrangia tanto questões de saúde, como doenças e fluxos corporais, quanto questões físicas e morais. Por exemplo, animais podiam ser considerados “puros” ou “impuros”, e o comportamento das pessoas podia gerar impureza e causar contaminação de objetos sagrados. Infelizmente, essa forma de entender contaminação e impurezas podia ser aplicada para questões étnicas. O Novo Testamento está repleto de polêmicas sobre isso no início do movimento de seguidores de Jesus. Dentre essas polêmicas, a mais notória é a se judeus e gentios podiam ter comunhão sem se preocupar com a contaminação de impurezas? Tiago, que era judeu e cristão, coloca de ponta-cabeça toda essa discussão. Sua forma de entender contaminação e impureza é muito significativa para todos os tempos. Contudo, como nossas sensibilidades ao assunto estão afloradas diante de uma pandemia, a leitura da carta de Tiago é ainda mais significativa hoje.
“Deus, o pai, considera como religião pura e imaculada visitar órfãos e viúvas em suas aflições, mantendo-se incontaminado pelo mundo” (Tiago 1.27).
No primeiro capítulo da carta de Tiago, há uma compilação de ditados de sabedoria. Esse capítulo introduz diversos assuntos que Tiago abordará no decorrer dos próximos 4 capítulos de sua carta. Ao concluir o primeiro capítulo com o versículo 27, Tiago converge tudo o que veio antes, e o que virá depois, nessa breve afirmação sobre “a religião”. Portanto, temos neste versículo o resumo de toda a carta e da teologia de Tiago. Como um bom sábio judeu, Tiago tem uma excelente capacidade de criar provérbios curtos em conteúdo e densos em significado.
O ponto de partida de Tiago é Deus, mas não como um conceito, e sim como uma pessoa de identidade específica: o pai. O fundamento dessa identidade, pelo que é possível observar na carta de Tiago, é que Deus é um generoso doador (ver Tiago 1.5; 4.6). É assim, por exemplo, que a paternidade de Deus é explicada em Tiago 1.17: “Toda dádiva que é boa e perfeita vem do alto, do pai que criou as luzes no céu”. Assim, a paternidade de Deus está em sua disposição de cuidar de toda a criação doando bons presentes a todos. Exatamente por se importar com o bem de toda a criação e de todos, Deus, o pai, tem um cuidado especial por aqueles que, na sociedade, são destituídos de desfrutar dessas boas dádivas divinas na criação. Por isso, tanto na carta de Tiago, quanto em sua fonte teológica proveniente do Antigo Testamento, a paternidade de Deus está vinculada ao modo como Deus cuida de órfãos e viúvas (por exemplo, Oséias 14.3; Salmos 10.14; Salmos 68.5-6). É a paternidade de Deus, que cuida de toda a criação dispensando dádivas a todos e de seu cuidado especial pelos mais vulneráveis da sociedade, que explica uma visão importante de Tiago. Para ele, Deus escolheu os pobres do mundo para serem ricos na fé e serem herdeiros do reino que Deus prometeu aos que o amam (ver Tiago 2.5). Assim, vemos que órfãos e viúvas representam o conjunto de pessoas e grupos sociais em situação de grande vulnerabilidade e necessidade.
Tendo esse ponto de partida, podemos entender todas as outras questões do versículo: a definição da religião pura e imaculada para Deus, assim como o contraste entre Deus e a religião pura e imaculada de um lado, e o mundo do outro. Vamos começar por esse último: o mundo.
Para Tiago, o mundo não é a criação ou o lugar onde as pessoas vivem. O mundo é uma realidade em oposição a Deus. Portanto, se Deus é um pai generoso que cuida de toda a criação, especialmente os mais vulneráveis e necessitados, dispensando boas dádivas, o que seria o mundo? Em primeiro lugar, o mundo deve ser um lugar marcado pela avareza e não pela generosidade. Em segundo lugar, o mundo deve ser um lugar marcado pelo egoísmo e não pela preocupação com o todo. Em terceiro lugar, o mundo deve ser um lugar de auto-exaltação, privilégios, status e desprezo pelos mais vulneráveis. De certa forma, Tiago estabelece as características do mundo a partir do estilo de vida dos ricos afluentes. De acordo com Tiago, os ricos vivem de acordo com a sabedoria “terrena, animal e demoníaca” (Tiago 3.15), baseada em “inveja amarga e preocupações egoísticas” que levam ao orgulho (Tiago 3.14). Essa realidade do mundo, vivida por esse tipo de ricos e poderosos, é uma ameaça à vida dos mais vulneráveis. Em seus projetos avarentos e egoístas, esses ricos oprimem, condenam e até matam os pobres (ver Tiago 2.6-7; 5.1-6).
O contraste entre Deus e o mundo, como já pode ser implicado do parágrafo acima, tem um contorno personificado em Tiago. Deus tem o caráter de pai e está associado aos mais vulneráveis, enquanto o mundo tem um caráter violento associado aos ricos. Esse contorno ganha uma clareza maior quando Tiago fala sobre como as pessoas podem viver de uma forma a serem “amigos de Deus” ou “amigos do mundo”. Como é dito em Tiago 4.4, ser amigo do mundo significa estar em inimizade com Deus. Essa é uma conclusão óbvia, já que Deus e o mundo estão em oposição. Mas podemos considerar duas questões importantes aqui. Primeiro, a amizade com o mundo é inimizade com Deus, porque aqueles que vivem dessa forma desconsideram a Deus e se tornam deuses para si mesmos. Aquele famoso trecho de Tiago sobre pessoas que planejam suas viagens de negócios e bons lucros, sem considerar a vontade de Deus, é exatamente sobre isso (ver Tiago 4.13-17). Segundo, como Deus se vincula aos mais vulneráveis, qualquer ação feita contra eles se torna uma ação de inimizade a Deus. Assim, aqueles que desprezam e abusam dos vulneráveis, ao fazê-lo, demonstram que desprezam ao próprio Deus e se colocam em inimizade com ele. Dessa forma, o modo como nos relacionamos com os mais vulneráveis da sociedade é o teste decisivo para sabermos se somos amigos de Deus ou amigos do mundo.
O que, então, seria ser amigo de Deus? Aqui já podemos considerar de forma mais direta o nosso versículo, Tiago 1.27. De forma objetiva, amizade com Deus tem a ver com confiar na identidade de Deus como um pai generoso, que cuida de toda a criação, portanto, tem um cuidado especial para com os mais vulneráveis e necessitados. Tal confiança, em Tiago, é sempre ativa e nunca intelectual ou mental. Por isso, confiar nessa identidade de Deus significa viver uma vida em conformidade com essa identidade. Assim, a chave de nosso versículo está na atividade de “visitar órfãos e viúvas em suas aflições”. Como veremos agora, essa prescrição de Tiago é a chave que abrirá todo o significado de nosso versículo, assim como toda a teologia da carta de Tiago.
Quando Tiago fala em visitar, ele não está falando de uma passadinha na casa de uma pessoa para um breve período de interação. A atividade esperada é ir ao encontro de alguém com o intuito de cuidar dela, permanecendo ao seu lado, se identificando com o seu problema, e fazendo algo que traga uma solução para sua situação. Tudo isso fica muito claro quando Tiago fala em “aflições”. É uma visita em que entramos na vida do outro e tornamos o problema dela o nosso próprio problema. Não é à toa que esse tipo de visita é a forma como a vinda encarnada de Deus, em Jesus, é imaginada. Zacarias, pai de João Batista, ao se encher do Espírito Santo, diz a respeito do que estava por vir: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo” (Lucas 1.68).
Visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições, portanto, nos estabelece como amigos de Deus a partir de duas características. Como já vimos, Deus, para Tiago, é um pai generoso especialmente compromissado com o bem daquelas pessoas mais vulneráveis e necessitadas. Ao visitarmos essas pessoas, estamos fazendo aquilo que o próprio Deus faz, daí a nossa identidade como amigos de Deus. Por outro lado, ao visitarmos os órfãos e as viúvas, estamos nos identificando com eles e tomando para nós suas aflições. Tornamo-nos, portanto, humildes e dependentes da “visita” de Deus, de sua graça e generosidade. Dessa maneira, como Deus tem um compromisso especial com as pessoas mais vulneráveis e necessitadas, nós nos tornamos alvos desse compromisso especial de Deus, portanto, somos considerados amigos de Deus.
É nessa tensão entre amizade com Deus e amizade com o mundo que podemos, então, entender a tensão entre pureza e impureza estabelecida por Tiago. Tanto no Antigo Testamento, quanto no judaísmo antigo, pureza e impureza tinham aspectos rituais, mas também aspectos morais. Mesmo mantendo o caráter moral da observância ritual, o judaísmo antigo via na tensão entre pureza e impureza um requisito para certos comportamentos exclusivos, ou seja, de segregação. O aspecto mais conhecido e notório disso, que conhecemos pelo Novo Testamento, era a proibição da comunhão de mesa entre judeus e gentios. Em outros círculos religiosos, inclusive atuais, em que há uma ênfase na pureza e na impureza, tende-se a criar regras de isolamento e exclusão social, assim como tabus sobre pessoas, lugares e certas atividades. Nessa visão da realidade, o mundo e Deus são associados, literalmente, a certos lugares, pessoas e atividades. Quando Tiago fala de amizade com Deus e amizade com o mundo, assim como pureza e impureza, ele estabelece como critério um aspecto moral da identidade de Deus. Nós nos mantemos puros ao seguirmos a lógica da ação de Deus na criação. Nós nos contaminamos com o mundo ao seguirmos a lógica da ação humana no mundo. A lógica de Deus é o cuidado generoso de um pai para o bem de todos, em especial dos mais vulneráveis. A lógica do mundo é avareza, o egoísmo, a arrogância e a violência, ou seja, aquilo que leva ao benefício próprio em detrimento dos outros, criando ricos afluentes e pobres oprimidos.
O mais interessante da forma como Tiago estabelece a tensão entre pureza e impureza, é como ele cria uma relação de causalidade entre as duas. Para muitos cristãos, a forma de não se contaminar pelo mundo, ou seja, avareza, egoísmo, arrogância, etc., vem por um tipo de santificação, ou purificação, baseada em isolamento, exclusão e exercícios intelectuais e introspectivos de piedade. Tiago é muito “mão na massa” para isso. Para ele, nos mantemos incontaminados pelo mundo ao visitarmos os órfãos e as viúvas em suas aflições. Na teologia de Tiago, a santificação é identificação com Deus, ou seja, amizade com Deus. E tal amizade, como vimos, passa pela visita aos vulneráveis e necessitados, inevitavelmente. Isso faz todo o sentido, pois combate-se avareza, egoísmo e arrogância, com práticas de solidariedade, generosidade e humilhação, simples assim.
Por fim, a parte mais importante. Como entender a afirmação de Tiago de que Deus considera isso como religião pura e perfeita? O que Tiago entende por religião são atos de adoração em conformidade com quem Deus é em suas ações na criação. Existe, assim, um teor de entendimento intelectual sobre a identidade de Deus. Contudo, para Tiago, conhecemos a Deus por suas ações, e nosso conhecimento de Deus está, da mesma forma, atrelado a nossas ações. Para Tiago, a religião, a piedade, o credo, a confissão de fé e a teologia aprovados pelo Deus de Jesus Cristo, é visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições.
Essa é uma mensagem extremamente relevante em qualquer circunstância de nossa experiência humana. Mas ela tem um significado muito profundo quando a situação de vulnerabilidade e necessidade de milhões de pessoas é agravada pela contaminação de um vírus. Se Tiago está certo em sua teologia, e temos muitas razões para acreditarmos que ele esteja, então esse é um momento crucial para a religião cristã. Seremos marcados pela amizade com o mundo? Tomaremos decisões avarentas, egoístas e arrogantes nos deixando contaminar pelo mundo, mesmo que sejam decisões com aparente piedade? Ou seremos marcados pela amizade com Deus? Tomaremos decisões baseadas numa generosidade parental para o bem de todos, especialmente dos mais vulneráveis e necessitados, nos tornando humildes e dependentes da graça e generosidade de Deus? A grande pergunta que todo cristão deve responder nesse momento é a seguinte: minha religião me leva a visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições?
Doação adicionada à cesta de doações.
Nós utilizamos cookies para melhorar o desempenho e segurança da plataforma, além de personalizar conteúdo e anúncios. Você pode configurar suas preferências sobre cookies no seu navegador clicando em "Configurações de Preferências". Para mais informações, confira nossa Política de Privacidade e a Política de Cookies
Este site usa cookies para melhorar sua experiência enquanto você navega pelo site. Destes, os cookies que são categorizados conforme necessário são armazenados em seu navegador, pois são essenciais para o funcionamento das funcionalidades básicas do website. Também utilizamos cookies de terceiros que nos ajudam a analisar e entender como você utiliza este website. Estes cookies serão armazenados em seu navegador somente com seu consentimento. Você também tem a opção de optar por não utilizar estes cookies. Mas a opção de exclusão de alguns desses cookies pode afetar sua experiência de navegação.
Os cookies funcionais ajudam a realizar certas funcionalidades como compartilhar o conteúdo do site em plataformas de mídia social, coletar feedbacks e outras características de terceiros.
Os cookies de desempenho são usados para compreender e analisar os índices-chave de desempenho do site, o que ajuda a proporcionar uma melhor experiência de usuário para os visitantes.
Os cookies analíticos são usados para entender como os visitantes interagem com o site. Esses cookies ajudam a fornecer informações sobre métricas o número de visitantes, taxa de retorno, fonte de tráfego, etc.
Os cookies de propaganda são usados para fornecer aos visitantes anúncios e campanhas de marketing relevantes. Esses cookies rastreiam os visitantes através de websites e coletam informações para fornecer anúncios personalizados.
Os cookies necessários são absolutamente essenciais para que o site funcione corretamente. Estes cookies garantem funcionalidades básicas e características de segurança do website, de forma anônima.