Direitos Humanos

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OS FUNDAMENTOS CULTURAIS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Defender o direito de grupos vulneráveis não foi uma invenção da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, da ONU, em 1948. Esse documento não surge num vácuo cultural; pelo contrário, ele faz parte
de uma longa história da busca humana por reconhecer o que é justo, o que é bom, o que promove o bem de indivíduos e comunidades para o avanço de uma sociedade melhor.
Esperamos que a última edição da ABBA-PAI tenha sido útil para entendermos melhor do que se
trata os direitos humanos, especialmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), e como
cristãos envolvidos com assistência social podem dialogar com os valores e movimentos de direitos
humanos. Nesta edição, queremos dar um passo para trás para que possamos avançar ainda mais nessa
conversa. Vamos discutir o contexto cultural e as possíveis influências culturais que levaram à DUDH. A
apreciação dessas questões culturais por trás da DUDH vão nos ajudar a olhar ainda mais para trás, para
a Antiguidade, na próxima edição da ABBA-PAI, para tentar entender a relação entre direitos humanos
e a fé bíblica. Só então poderemos olhar para o presente e para o futuro e propormos um chamado à
missão cristã marcada pelo avanço dos direitos humanos.

O CONTEXTO CULTURAL DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

A confiança na bondade e no progresso humano por meio da razão marca a sociedade ocidental no
período moderno, especialmente entre o fim do século XVIII e metade do século XX. Por um lado, esse é
o período dos movimentos colonialistas e de aspirações imperialistas, marcados pela guerra, genocídios
e escravidão. Por outro lado, também é o período das grandes revoluções e de aspirações de liberdade,
igualdade e fraternidade, como no famoso slogan da Revolução Francesa.

Por mais que esses dois fenômenos pareçam antagônicos, eles são culturalmente fundamentados
por essa confiança na bondade e no progresso humano por meio da razão. Ambos são projetos humanos
de construção de uma civilização à imagem e semelhança dos “iluminados” que, de uma forma ou
de outra, tira do caminho e elimina os “selvagens”, aqueles com uma identidade e um modo de viver
diferente dos ideais ocidentais. É esse projeto que encontra o seu fim na Segunda Grande Guerra,
quando o próprio ocidente sofre as consequências de tais aspirações. As atrocidades contra a vida e a
humanidade, antes uma realidade promovida pelo ocidente contra povos nativos, agora atinge a própria
civilização ocidental. Quando os “iluminados” sofrem as consequências do seu próprio poder “selvagem”,
a ingenuidade da confiança na bondade e no progresso humano por meio da razão se revela e o projeto
moderno encontra seu fim.
Quando situamos a DUDH, que surge logo após a Segunda Grande Guerra, nesse contexto sócio
político e cultural, duas coisas ficam claras. A primeira é que a DUDH rejeita o projeto imperialista e
universalizante típico do ocidente no período moderno. A segunda é que os ideais e os valores que
marcam o projeto da modernidade continuam influentes no ocidente, de forma geral, e na DUDH
especificamente. De forma simplificada, a DUDH aceita o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade,
mas rejeita dois erros cometidos pelo projeto moderno ocidental que têm a ver com uma dinâmica de
poder “de cima para baixo”: desconsiderar as realidades particulares de cada povo e comunidade na
busca por esse ideal; usar qualquer forma de força para implementar esse ideal. Se estamos falando
dos direitos humanos de todos, e não só de alguns, é claro que esses dois erros impedem, em vez de
avançarem, o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade.

A ORIGEM CULTURAL DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Um pequeno resumo histórico será útil para guiar nossa discussão da origem cultural dos direitos
humanos, especialmente em sua versão na DUDH. A noção de direitos humanos tem raízes na
Antiguidade, mas é na Idade Média que ela ganha força no desenvolvimento dos “direitos naturais”
da teologia católica escolástica, especialmente por Tomás de Aquino. Mas, para a concepção atual de
direitos humanos, a influência fundamental está na era moderna, a partir da Declaração de Direitos
Inglesa de 1689, a Constituição dos Estados Unidos de 1787, e a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789, tendo origem na Revolução Francesa.

Alguns exemplos desses três movimentos podem ser úteis para mostrar esse histórico moderno
na busca por definições claras sobre os direitos humanos que culminou com a DUDH. A Declaração
de Direitos Inglesas é o resultado de um esforço do Parlamento contra abusos de poder por parte da
monarquia, especialmente num contexto religioso, pois o rei Jaime II buscava expandir sua fé católica
pela Inglaterra, o que desagradava a aristocracia anglicana. Assim, neste documento, o Parlamento
defende alguns direitos que se fazem presente na DUDH, por exemplo, a liberdade religiosa, a liberdade
de expressão e de defesa num processo legal. O caso inglês é interessante porque o Parlamento busca
garantir esses direitos convidando o rei Guilherme III da Holanda, um país que garantia proteção a
protestantes perseguidos na Inglaterra e na França, a estar presente no dia da votação do documento.
Em outras palavras, a garantia dos direitos é obtida, em primeiro momento, por meio de uma ameaça
militar estrangeira contra a monarquia inglesa. Ainda que os direitos garantidos beneficiem grande
parte da população inglesa, eles surgem de disputas políticas entre grupos com interesses políticos, por
meio de forças políticas e militares. Isso é especialmente verdade quanto às disputas religiosas, já que a
liberdade religiosa defendida no documento busca garantir a liberdade protestante das elites políticas
do Parlamento.
No caso da Constituição dos Estados Unidos de 1787, o contexto também é de disputas políticas,
neste caso entre a elite colonial e a monarquia inglesa. Em grande parte, o documento estadunidense
é sobre organização política e não sobre direitos humanos. A preocupação com os direitos humanos
se encontra nas emendas promulgadas posteriormente, sendo as 11 primeiras emendas promulgadas
em 1798. À semelhança da DUDH, o documento estadunidense defende a liberdade religiosa, o direito
à propriedade e a defesa em processos legais. Um detalhe interessante se encontra na Emenda IX, em
que é dito: “a enumeração de certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando
ou coibindo outros direitos inerentes ao povo”. O princípio apresentado aqui é desenvolvido no último
artigo (art. 30) da DUDH: “Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de
maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma
atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados”.
Os direitos humanos apresentados nas emendas da Constituição dos Estados Unidos, como no caso
inglês, traz benefícios para a população geral, mas serve os interesses das elites políticas e é garantido,
obviamente, por vias militares. O caso estadunidense é flagrante, já que não há nenhuma consideração
pelos direitos humanos das comunidades nativas e, muito menos, consideração pelos seus valores e
modo de vida para definir os direitos humanos expressados em seu documento fundante. A defesa da
liberdade religiosa, então, é uma defesa da liberdade cristã acima de tudo, garantindo os privilégios
religiosos da elite política colonial. Mais uma vez, como no caso inglês, o cristianismo está positiva e
negativamente relacionado com a garantia de direitos humanos.

Na França, pela primeira vez, temos um movimento de busca por direitos humanos sem
interesses religiosos; pelo contrário, parte da Revolução Francesa tem a ver com eliminar o fundamento
religioso da organização política, especialmente da monarquia. É na França, também, que existe uma
participação popular significativa na formulação e busca pelos direitos humanos, ainda que haja uma
forte influência da elite intelectual francesa e o movimento tenha tido sua força política relacionada
com o apoio da aristocracia e da burquesia. A participação popular, mesmo na definição dos direitos
humanos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, se deve ao fato de a Revolução
Francesa ter a ver, em grande parte, com a produção agrária. A França era o país mais populoso da
Europa, sua produção ainda era organizada pelo sistema feudal e houve uma perda grande na produção
agrária em 1788. Todos esses fatores pressionavam a garantia de sustento mínimo da população de
forma geral. Compartilhado com os documentos inglês e estadunidense, o documento francês fala sobre
a liberdade de religião e liberdade de expressão (artigo 10), processos legais (artigo 9), mas acrescenta
alguns direitos e definições que merecem destaque. O documento francês é explícito sobre a igualdade
inata de todas as pessoas e destaca a distinção social como sendo justificada somente quando útil
para o bem comum (artigo 1). O documento francês estabelece a propriedade como um fundamento
para a liberdade, portanto, como direito de todos (artigo 17). Por fim, o documento francês garante o
direito à resistência à opressão (artigo 2). Diferente dos outros dois documentos, na França existe uma
intencionalidade em qualificar a liberdade de uma forma bem ampla, eliminando os fundamentos de
privilégio das elites. No Artigo 4, é dito que “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem
por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos”.
Aqui, não se trata de liberdade de algum poder opressor somente, mas liberdade para auto-afirmação,
tendo no direito do próximo o limite da liberdade individual. É possível que aqui esteja parte da origem
de dois fundamentos importantes da DUDH: a fraternidade e a pluralidade humanas como expressão da
sua dignidade. Uma característica negativa que a luta por direitos humanos na França compartilha com
a Inglaterra e os Estados Unidos é uso da força militar ou violenta para sua garantia.
Por esses exemplos, podemos ver como a DUDH, como um documento histórico, se encaixa bem
como herdeira de um processo importante das culturas ocidentais na busca pelos direito humanos.
Pelo exemplo dos três documentos que vimos, podemos falar desse processo a partir dos três temas da
Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Em primeiro lugar, o direito humano básico
era a liberdade no sentido de “liberdade da” coerção de poderes, especialmente do Estado. Em segundo
lugar, busca-se lutar contra as desigualdades criadas pela exploração imperialista e capitalista, o que
depende de intervenções estatais para assegurar os “direitos a” bens e benefícios. Em terceiro lugar

percebe-se que os direitos humanos dependem de “direitos solidários” com base na concepção
da fraternidade, ou seja, da humanidade como família em que cada grupo tem seu valor afirmado
(pluralismo) e cujo bem estar e futuro de todos é interdependente. Os leitores da última edição da
ABBA-PAI podem perceber que a DUDH, obviamente, está fundamentada nesses três elementos dos
direitos humanos.
Como vimos um pouco antes, apesar da DUDH se encaixar nesse processo histórico das culturas
ocidentais e compartilhar dos seus valores, ela ainda é uma rejeição do projeto “iluminista”, que se
mostrou desastroso na Segunda Grande Guerra. A DUDH, como foi falado, rejeita o projeto imperialista
e universalizante típico do ocidente no período moderno. Essa rejeição não tem somente um caráter
teórico, mas prático, ao se colocar como um documento que não tem força de lei, e, mais importante,
que intencionalmente deixa em aberto muitas aplicações dos seus valores conforme a particularidade
de cada comunidade.
Essa tensão entre valores humanitários e práticas imperialistas e universalizantes revela um
uma característica relevante do desenvolvimento dos direitos humanos de forma geral: a discussão dos
direitos humanos está entrelaçada com uma discussão maior sobre ordem política entre indivíduos,
comunidades, e poderes institucionais, especialmente os poderes estatais. Essa percepção será relevante
quando lidarmos com os valores de direitos humanos na Antiguidade e na Bíblia, já que neste contexto
o papel dos reis é fundamental. Mas, na parte final desta edição, vale considerar como o cristianismo,
como parte da cultura ocidental, contribuiu para a formulação dos valores dos direitos humanos
e participou do projeto imperialista e universalizante que falhou miseravelmente para o avanço dos
direitos humanos.

O CRISTIANISMO E OS FUNDAMENTOS CULTURAIS MODERNOS DA DUDH

Ainda que essa questão seja um tanto difícil de lidar, ela é importante para os propósitos do nosso estudo
sobre direitos humanos. É a partir dessa consideração que podemos apontar para um direcionamento
melhor na nossa busca por uma missão cristã que faz avançar, e não impedir, os direitos humanos.
Por um lado, tradições cristãs bem influentes sobre a ordem política moderna ocidental,
especialmente na Inglaterra e Estados Unidos, enfatizam a consciência, a liberdade e os direitos dos
indivíduos contra qualquer forma de controle tirânico de poderes estabelecidos, especialmente o
Estado. Essa ênfase é o que mais aproxima o cristianismo como uma das origens culturais dos direitos
humanos, pois essa era uma causa comum com os humanistas seculares. Isso revela que não estamos
diante de um valor exclusivamente cristão. Podemos traçar esse valor de volta para a cultura Greco romana.
Assim, podemos dizer que estamos diante de uma origem simplesmente ocidental, da qual o
cristianismo é só uma parte.
Por outro lado, essas tradições cristãs também defendem a submissão às autoridades, muitas
vezes em detrimento da liberdade individual e do bem comum, e projetam esse poder e autoridade
sobre toda a sociedade para a própria igreja. Especialmente no contexto da Inglaterra e dos Estados
Unidos, essa aparente contradição é bastante compreensível. A defesa pela liberdade, nesse contexto,
era uma disputa de poder político no qual a religião era um fator importante. Tratava-se da liberdade
de certos poderes estatais que serviam o propósito de uma elite que buscava formar um poder estatal
diferente. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, era a liberdade do poder estatal da Inglaterra pelo
interesse das elites políticas da colônia para formar seu próprio poder estatal. Pensando no papel da
religião nessa disputa, afirmava-se a liberdade da religião contra imposições coloniais, mas afirmava-se
a submissão às autoridades das elites na colônia.
De alguma forma, então, essa tensão entre a liberdade de autoridades políticas e submissão a
outras autoridades política servia para garantir um poder político a certas tradições cristãs que eram
privilegiadas pela elite política. Em grande medida, portanto, a liberdade, como um direito humano
dentro do projeto moderno, assegurava a autoridade da igreja independentemente de certos poderes
políticos, mas servindo aos interesses de outros poderes políticos.

É nessa confusão entre poderes políticos e o papel do cristianismo como parte da cultura
ocidental que vemos a igreja fundamentando certos valores dos direitos humanos ao mesmo tempo
que participava de práticas de violações profundas dos direitos humanos de diversos indivíduos e
comunidades.
Diante desse caráter político da autoridade da igreja e sua relação com a cultura ocidental
como um projeto moderno, especialmente na tradição cristã protestante, dois fenômenos diferentes
aconteceram que são relevantes para a discussão sobre direitos humanos. O primeiro é que se
confunde o avanço da “civilização” ocidental com o avanço do cristianismo. Por exemplo, tipicamente
é defendido que o capitalismo e a democracia constitucional são desenvolvimentos particulares da
tradição cristã protestante. Dada a relação entre esses fenômenos e a cultura ocidental, David Smolin
conclui, corretamente, a partir da mesma lógica, que “isso meramente demonstra a verdade de que o
protestantismo, historicamente, é um desenvolvimento puramente ocidental”. Em certo sentido, essa
relação entre igreja e cultura ou igreja e Estado, que permeia diversas tradições cristãs, e não somente o
protestantismo, faz com que a luta dos direitos humanos possa ser, também, uma luta contra a autoridade
imposta pela própria igreja, algo que ocorreu de forma muito explícita na Revolução Francesa. Isso tem
a ver com o segundo fenômeno. Em vez de depender da autoridade moral da igreja para determinar os
valores dos direitos humanos, surge a busca por uma autoridade moral separada da igreja, baseada na
razão e não na religião.
É neste segundo fenômeno que está a explicação para a confusão existente entre a relação do
cristianismo com os direitos humanos. Para alguns, os direitos humanos como o conhecemos hoje é
como se fosse uma manifestação direta dos valores cristãos, especialmente protestantes e ocidentais.
Para muitos outros, os direitos humanos somente avançaram pelos esforços de humanistas seculares em
oposição à igreja. Talvez essa segunda opção seja a mais comum entre cristãos evangélicos. Por um lado,
ela se explica pela grande diferença na relação com a igreja entre movimentos de direitos humanos da
tradição protestante, puritana, inglesa e estadunidense, e da tradição secular francesa. No fim, porém,
ambas as tradições apresentaram um caráter fortemente ocidental e iluminista, com imposições dos
seus valores e cultura sobre outras por meio do poder político e até militar, especialmente no caso do
movimento de colonização.
Ter consciência dessa relação do cristianismo com a cultura ocidental e o projeto moderno nos
ajuda em dois pontos que levam a dois erros diferentes. O primeiro é imaginar que o poder político,
especialmente o estatal, está sempre em oposição aos direitos humanos. O poder político tem um
papel fundamental na garantia dos direitos humanos, mas precisa fazer parte de uma rede mais ampla.

Somente assim, o poder estatal poderá considerar os direitos humanos, cujos valores e aplicações
práticas, beneficiam todos os indivíduos e comunidades em uma sociedade plural, e não somente um
grupo da elite, de uma “maioria moral”. O segundo erro é imaginar que ao rejeitar o papel do Estado, e
se focar em mudanças individuais, é possível se separar de projetos de poderes políticos e ideológicos.
Esse é um erro comum entre evangélicos. Thomas Moore descreve bem o problema: “presume-se que as
pessoas, quando libertadas dos efeitos opressivos do pecado em suas vidas, serão capazes de construir
uma sociedade e uma cultura mais justa”. Mas, como vimos, esse movimento ainda pode ser parte de um
projeto político que inclui até mesmo a violência em sua prática.
De forma geral, portanto, os direitos humanos em sua construção moderna, por implicação a DUDH
também, têm suas origens culturais no cristianismo ocidental, especialmente no protestantismo inglês
e estadunidense, e no secularismo humanista ocidental. Existem, como veremos na próxima edição da
ABBA-PAI, valores e ideais fundamentais dos direito humanos e da DUDH que não são exclusivos dessa
origem, ainda que tenham perpassado por ela. Mas antes de vermos essas fontes culturais diferentes,
é necessário concluir este tópico sendo explícito a respeito de uma característica crucial dessa origem
cultural ocidental. Diante do que se pode ver historicamente, em todas as tradições dos direitos humanos,
anteriores à DUDH, existe uma relação com certas estruturas políticas e ideologias. Parece razoável dizer
que, ainda mais do que os valores e ideais, a marca ocidental da origem cultural dos direitos humanos
está na forma política de implementação desses ideais e valores como imposição, muitas vezes, violenta
a grupos de status minoritário dentro dessa estrutura. Essa implementação política, sempre de cima
para baixo, muitas vezes ganha um caráter opressor, colonizador e universalizante. A DUDH, como
vimos na última edição da ABBA-PAI e brevemente acima, não carrega essa característica, trabalhando
fora das estruturas políticas e a partir da perspectiva da experiência básica da família e dos próprios
grupos oprimidos.
Para cristãos interessados em direitos humanos, essa diferença é de suma importância, por causa
da típica confusão entre cristianismo e cultura ocidental, especialmente quando tivermos que lidar com
a relação entre direitos humanos, a fé bíblica e a missão cristã, numa futura edição da ABBA-PAI. A partir
dessa consciência, podemos concluir este tópico com uma fala de Eleanor Roosevelt (1884–1962), a
única mulher da comissão que elaborou e aprovou a DUDH, e que se identificava como cristã:

"Onde se dá o começo dos direitos humanos? Em pequenos lugares, perto de casa—
tão perto e pequenos que não podem ser vistos em quaisquer mapas do mundo.
Contudo eles são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que se vive, a escola ou
universidade onde se estuda, a fábrica ou a fazenda onde se trabalha. Tais são os
lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de
oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos
tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a
organização do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos
em vão pelo progresso no mundo maior."

CONCLUSÃO

A citação de Eleanor Roosevelt é útil para esclarecermos pontos importantes sobre direitos humanos,
Estado e influências culturais como conclusão desta edição. Para muitos, a ênfase nos “pequenos
lugares”, nesses contextos menores onde se dá a vida cotidiana das pessoas, pode levar a implicações
erradas sobre questões mais estruturais, culturais e o papel do Estado em tudo o que envolve os direitos
humanos. Para alguns, talvez, essa ênfase seja benéfica, porque o Estado é um potencial opressor,
portanto, violador dos direitos humanos. Para outros, talvez, a ênfase seja maléfica, porque não responde
aos problemas estruturais que estão por trás de muitas violações de direitos humanos. Contudo, essa
ênfase não tem o objetivo de impedir a ação do Estado em favor dos direitos humanos e nem de ignorar
problemas estruturais. Essa ênfase é uma resposta aos abusos de poder do Estado na violação dos
direitos humanos e ao ímpeto universalizante e imperialista de valores culturais ocidentais, às vezes
de caráter cristão, que violam a liberdade e agência das diversas comunidades humanas de determinar
o que é bom para si mesmas. Assim, articular os direitos humanos a partir desses “pequenos lugares”,
e tê-los como objetivo final dos benefícios dos direitos humanos, é uma forma de qualificar a ação do
Estado para garantir os direitos humanos e estabelecer a relação adequada entre diversas culturas e
grupos sociais numa sociedade global e plural.
Uma conclusão adequada, como forma de resumir o que podemos aprender dos fundamentos
culturais dos direitos humanos, é considerar relações de poder. Não pode haver direitos humanos
quando existe imposição de valores e práticas “de cima para baixo”. No Brasil, conforme refletido em sua
legislação, como vimos na última edição da ABBA-PAI, o Estado garante direitos civis e humanos a partir
de valores e práticas que emergem da realidade particular de comunidades, famílias e indivíduos. Para
nós cristãos, como veremos numa futura edição sobre fé cristã, missão e direitos humanos, a ênfase nos
“lugares pequenos” nos força a dois reconhecimentos: (1) na história, o cristianismo se confunde com
a cultura ocidental em suas aspirações universalizantes, que são, na verdade, imperialistas, impondo
valores de uma cultura particular sobre outras; (2) os direitos humanos e a fé cristã, para avançarem,
dependem da valorizam da diversidade cultural, enquanto mantêm certos valores universais que são
preenchidos por expressões culturais e práticas particulares de diversos grupos sociais, famílias e
indivíduos em suas experiências particulares.
Na próxima edição, daremos um importante passo para trás que vai nos ajudar nesses dois
reconhecimentos. Falaremos sobre direitos humanos em culturas vizinhas e contemporâneas ao antigo
Israel. Isso nos fará perceber que muitos valores dos direitos humanos não são exclusivamente cristãos
ou ocidentais e que muitos desses valores que encontramos na Bíblia são compartilhados por essas
outras culturas.

- EQUIPE ABBA

Direitos Humanos

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DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL

“Os direitos humanos, no Brasil, só defende bandidos, estupradores, marginais, seqüestradores e
até corruptos”. Infelizmente, essa é a percepção de muitos brasileiros. Em pesquisa feita em 2010,
quase metade dos brasileiros associava a defesa dos direitos humanos com a “defesa de direitos de
bandidos”. Vivendo no Brasil de 2021, sabemos que essa percepção é mais notória, seja por ter se
tornado ainda mais comum ou por ter se tornado mais explícita e pública como resultado de discursos e
práticas políticas dos últimos anos. A verdade é que estamos ainda mais distantes, desde 2010, de uma
apreciação adequada do valor e do papel dos direitos humanos na construção de uma sociedade melhor
e na preservação da vida dos mais vulneráveis. Sendo esse o sentimento nacional a respeito dos direitos
humanos, não é uma grande surpresa que exista tanta resistência entre os cristãos em se associar com
a defesa dos direitos humanos.
Nessa mesma pesquisa de 2010, um terço dos brasileiros nunca tinha ouvido falar da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), formulada em 1948 pela ONU. Falta, portanto, informação e
conhecimento. Isso é verdade, também, no caso mais específico de cristãos, mesmo aqueles que estão
diretamente envolvidos em trabalhos de assistência social a grupos em risco e em vulnerabilidade social.
Ainda que cristãos não precisem fundamentar o seu trabalho na DUDH, ignorar o seu papel e o que ela
representa atualmente não é uma opção. Dentre muitos motivos, o principal deles é que, no Brasil, o
trabalho de assistência social encontra respaldo legal na Constituição Federal e no Estatuto da Criança
e do Adolescente que, em seus valores, e mesmo linguagem, é dependente da DUDH, como veremos.
Por isso, nesta edição da ABBA-PAI, queremos esclarecer qual venha a ser a relação entre a DUDH e o
trabalho de assistência social no Brasil, inclusive no contexto cristão. Faremos uma apresentação da
DUDH, sua relação com a legislação brasileira, e concluiremos com uma aplicação cristã da discussão.

 

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Quando a vida está sob ameaça é o momento de se pensar mais conscientemente sobre o seu valor. Quando
a vida de grupos específicos de pessoas é ameaçada é o momento de se pensar mais conscientemente
sobre direitos humanos. É claro que o valor da vida e os direitos humanos estão intrinsecamente
relacionados. Não é possível afirmar um e negar o outro. Contudo, é preciso deixar claro que os direitos
humanos têm a ver com a defesa do valor da vida de grupos específicos que estão mais vulneráveis à
ameaça de morte. É por isso que a Declaração Universal dos Direitos Humanos surge como uma resposta
às atrocidades da Segunda Grande Guerra. Apesar de a guerra ter sido uma ameaça generalizada à
vida, ela foi muito mais mortal para determinados grupos e seguindo algumas práticas mortais bem
específicas. O racismo e desprezo por grupos etnicamente e sociopoliticamente minoritários marcou a
violência da Segunda Grande Guerra. Da mesma forma, tortura, agressões militares com alvos civis, e o
bombardeio nuclear caracterizaram as novas táticas que ameaçavam a vida da humanidade. É diante
desse contexto específico que surge a DUDH.
É isso que explica duas características importantes da DUDH: a linguagem de fraternidade
universal e de igualdade. Essas duas características estão refletidas nas primeiras linhas da DUDH:
“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”
(Preâmbulo). Em seus trinta curtos artigos, a DUDH defende o direito à vida, à liberdade e à segurança
sem distinção de qualquer tipo, como raça, cor, sexo, língua, religião ou opinião política (ver Artigos 2 e
3). Vale destacar que na defesa do direito de segurança, diante das atrocidades de tortura e extermínio
da Segunda Grande Guerra, a DUDH fala especificamente sobre o direito de julgamentos públicos e
justos, a proteção da lei, assim como repudia qualquer prática de tortura (ver Artigos 5 a 12). Esses
valores marcam a primeira parte da DUDH que é, certamente, sua parte mais conhecida. No entanto,
é necessário atentar para sua segunda parte para evitar uma avaliação da DUDH como um projeto
totalitário e “progressista”.
Popularmente, como apontamos no início dessa edição, a DUDH é acusada de defender “bandidos”.
Esperamos que o que vimos até aqui já seja o suficiente para se perceber a falsidade dessa acusação. No
entanto, mesmo em discussões mais elevadas sobre a DUDH, existem algumas falsas impressões que
levam a críticas infundadas. A DUDH é interpretada como um projeto das elites intelectuais das nações
mais ricas, impondo seus valores e suas diretrizes seculares ideologicamente determinados, a todo o
mundo. Tal interpretação imagina que a DUDH invalida outras formas de defesa do valor da vida e dos
direitos humanos, especialmente aquelas de fundamento religioso. Essa crítica entende a linguagem da
DUDH como muito detalhada e específica, traindo seu caráter universal ao ignorar as particularidades
de cada cultura, povo e país. Às vezes, tal visão leva a imaginar a DUDH como mais uma força para
fundamentar um governo global despótico.
É por isso que é necessário dar uma atenção maior à segunda parte da DUDH. De forma resumida,
essa segunda parte lida com direitos socioeconômicos e culturais. Ela começa com o Artigo 16 sobre o
direito de formar família a partir de decisões consensuais entre dois adultos. Mais ainda, a DUDH afirma
que “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do
Estado” (Artigo 16.3).

É a partir dessa afirmação que a DUDH prescreve os direitos a propriedade, cultura, religião e educação,
organização social, trabalho digno e condições adequadas de vida para o sustento individual e familiar.
Duas coisas ficam claras nessa segunda parte da DUDH: seu aspecto universal não elimina o particular
e os direitos são somente a condição básica para o desenvolvimento humano. A forma como a DUDH
estabelece a família como realidade fundamental cria um eixo entre o universal e o particular. O
fundamento central da DUDH, estabelecido em seu Preâmbulo, é a fraternidade universal, ou seja, toda
a humanidade é uma única família humana. Mas tal fundamento universal é derivado, e não imposto,
da realidade particular da família como núcleo natural e fundamental da sociedade, ou seja, da própria
humanidade. Mais ainda, o fundamento da fraternidade universal não é uma ideia na DUDH. Ela serve
tanto como ponto de partida para os direitos prescritos quanto como a realidade experimentada
quando esses direitos são garantidos. A fraternidade universal não precisa ser aceita de antemão, mas
certamente será experimentada por todos os envolvidos na garantia dos direitos humanos.

Tendo a família como núcleo natural e fundamental, a DUDH estabelece a particularidade da
experiência familiar como ponto de partida de seu valor fundante da fraternidade universal. Mas não
só. A família, em sua realidade particular e universal, é fundante para qualquer valor universal, inclusive
de direitos humanos. Mas, como vimos, a DUDH tem origem em experiências em que esse fundamento
foi profundamente negado e violado. Assim, o que fazer quando a família, no âmbito particular e
universal, se torna um ambiente de violência e negligência a ponto de colocar em risco a vida e o bom
desenvolvimento de seus membros? A ABBA, obviamente, trabalha exatamente nesse difícil contexto,
o que nos faz reconhecer que a família de origem, em si, ou qualquer outra realidade particular, não
pode estar acima de certos valores. É por isso que devemos considerar quando a linguagem dos direitos
humanos é específica e quando é aberta.
Quando a DUDH fala sobre violência, tortura, injustiças de forma geral, a linguagem é específica.
Podemos ver dois exemplos, um negativo e um positivo, dentro do contexto da vida familiar. No artigo
12, a DUDH afirma que “ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu
lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação”. É uma linguagem específica que
pode ser aplicada de forma clara em casos particulares. No artigo 25, a DUDH afirma que “a maternidade
e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora
do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”. Também, uma linguagem específica que pode ser
aplicada de forma clara em casos particulares.
Essa linguagem, de fato, elimina qualquer possibilidade de significado diferente em contextos
diferentes. A linguagem específica, porém, ocorre para se evitar abusos e não para desqualificar valores e
aplicações específicas a cada família, povo, nação, cultura e religião. É aí que entra a linguagem aberta de
valores. A afirmação fundamental de que “todo ser humano tem o direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal” (Artigo 3) utiliza uma linguagem aberta o suficiente para ser preenchida por contextos particulares.

Esses são valores derivados da experiência comum humana e, nesse sentido, são universais, mas sem
perder seu caráter aberto que dê conta de expressões particulares. Esse equilíbrio entre universalidade
e particularidade é importante para evitar que tais valores sejam abusados de duas formas: (1) como
valores específicos demais determinados por um grupo a serem impostos sobre outros grupos; (2) como
valores abertos demais a ponto de um grupo específico ser capaz de violar os direitos de outros grupos ou
indivíduos e ainda se fundamentar em tais valores.
Como, então, lidamos com essa questão entre valores e direitos específicos, entre linguagem
específica e aberta? De forma mais prática, como lidar com uma família que tem valores e segue práticas
que colocam em risco a vida, ou os direitos humanos, de seus membros? Uma das respostas dadas pela
DUDH é que um direito não pode ser usado contra outro direito (Artigo 30). Por exemplo, o direito de
proteção contra a intervenção na vida privada, na família ou no lar (Artigo 12), não pode ser usado como
justificativa para impedir a interferência da comunidade ou do Estado em casos em que a família viola
direitos de seus membros, especialmente mulheres e crianças. A liberdade religiosa, por exemplo, que é
um dos valores da DUDH, não pode ser usada para justificar a violação de outro direito, como o direito
à segurança pessoal. É claro que existem casos mais ambíguos e complexos, mas a DUDH oferece um
excelente fundamento para o diálogo que tem o objetivo de preservar e fazer avançar a vida de todos.
Diante de tal objetivo, fica mais compreensível a ênfase dos direitos humanos em defender grupos
específicos que estão mais vulneráveis à ameaça de morte. É exatamente por querer preservar e avançar a
vida de todos é que os direitos humanos são um instrumento de defesa dos grupos mais vulneráveis, que
mais sofreram violações, abusos e violências contra sua vida por causa de uma característica específica
de suas identidades. Na DUDH, os direitos humanos são afirmados a todos “sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (Artigo 2). A linguagem negativa, “sem distinção”,
precisou ser desenvolvida de forma afirmativa a fim de que cada grupo tenha seus direitos garantidos para
poderem afirmar a igualdade de valor de suas identidades específicas, especialmente porque a violação de
seus direitos se dá, muitas vezes, em razão dessa identidade. Um cristão, na China, que tem seus direitos
humanos violados por ser cristão, por exemplo, não somente deve ter seus direitos garantidos “sem
distinção” de sua identidade, mas sim na afirmação da igualdade de valor de sua identidade como cristão
diante das outras identidades que, por terem maior status e poder, menosprezam a identidade cristã. Uma
pessoa negra que sofre racismo, portanto tem seus direitos humanos violados, não somente deve ter seus
direitos garantidos “sem distinção”, mas na afirmação da igualdade de valor de sua identidade diante das
outras identidades que menosprezam a identidade negra. É exatamente por que “todas as vidas importam”
é que se faz necessário dizer que “vidas negras importam”, “vidas pobres importam”, “vidas encarceradas
importam”, etc.

Isso nos leva ao último aspecto da DUDH que precisa ser mencionado aqui, mais uma vez atentando para a
segunda parte da DUDH, que lida com direitos socioeconômicos e culturais. David Smolin resume bem os direitos
incluídos nesta segunda parte da DUDH: “direito ao trabalho, incluindo a livre escolha de emprego, condições
de trabalho justas e favoráveis, e proteção contra o desemprego; direito ao descanso e ao lazer, incluindo
férias remuneradas; padrão de vida adequado para a saúde e o bem-estar do trabalhador e de sua família,
incluindo melhora contínua das condições de vida e o direito de seguridade em caso de desemprego, doença,
deficiência física, viuvez e idade avançada; educação elementar obrigatória e gratuita, implementação
progressiva de educação secundária gratuita, e um sistema de educação superior acessível a todos com base
em méritos; direito de formar e integrar sindicatos; direito ao padrão mais elevado possível de saúde física e mental”.

Esses direitos práticos e específicos qualificam os valores universais da primeira parte,
especialmente o direito à vida, à liberdade e à segurança. Não só isso, a relação entre essas duas partes
também é sobre como a primeira parte é alcançada a partir da segunda. A verdade é que não há a
possibilidade de se garantir o direito à vida, à liberdade e à segurança se não existir um ambiente de
igualdade de oportunidades e justiça social que proporcionam o bom desenvolvimento humano. O
ser humano e a humanidade dependem de um ambiente que supra suas necessidades mais básicas,
especialmente as necessidades sociais da família e de uma comunidade acolhedora, e as necessidades
materiais de alimentação, saúde e moradia, a fim de que seu potencial seja buscado e alcançado. Nesse
sentido, para que indivíduos e grupos menosprezados e violados sejam capazes de afirmar seu valor
e dignidade, é necessário que seus direitos humanos sejam garantidos. Por outro lado, com direitos
humanos garantidos, o valor e a dignidade de todos são afirmados e cria-se um ambiente adequado para
o bom desenvolvimento humano.
E é aqui que entra um problema fundamental da DUDH: ela não tem caráter legal com a força
de garantir os direitos humanos que defende. A DUDH depende que seus valores sejam aceitos por
governos, comunidades e indivíduos a fim de que tais direitos sejam garantidos. E é exatamente isso
que veremos a seguir. Falaremos da influência da DUDH na legislação brasileira e de como comunidades,
especialmente comunidades cristãs, podem dialogar com a DUDH. Seja pela imposição da lei, ou pelo
diálogo e esforço público colaborativo, veremos que o objetivo é, especificamente para nós na ABBA, que
a humanidade, em sua identidade como imagem e semelhança de Deus, família de Deus, se desenvolva
plenamente em seu propósito divino de contribuir para o avanço de um mundo de riquezas e belezas
abundantes; um mundo capaz de acolher, fomentar e sustentar toda sorte de vida; uma sociedade
cultural e economicamente diversa, plural e vibrante.

 

DUDH, CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

No Brasil, como vimos, a DUDH é pouco conhecida. Contudo, a sociedade brasileira tem sido
profundamente influenciada por ela. Tanto a Constituição Federal de 1988 (CF/88), quanto o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) de 1992, foram influenciados pelos valores da DUDH. Neste tópico,
queremos mostrar essa influência e sua importância na defesa dos direitos humanos no contexto
brasileiro, especialmente na área de atuação da ABBA.
A CF/88, de forma geral, e a ECA, no caso específico de crianças e adolescentes, seguem valores
da DUDH quanto aos direitos humanos. Além desse compartilhamento de valores, como veremos logo,
a CF/88 também surge como resposta a um período nacional, a ditadura militar, em que as violações
de direitos humanos foram prática comum, destruindo a vida de muitos e prejudicando toda a sociedade
brasileira. Esse contexto de violência, abuso e morte, assim como ocorreu no contexto da Segunda
Grande Guerra que deu origem à DUDH, foi mais prejudicial e destrutivo para certos grupos da sociedade
brasileira. Por isso, como na DUDH, temos um valor de igualdade notório. A CF/88 diz o seguinte:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade” (Artigo 5). Já o ECA afirma que a criança e o adolescente têm direito “à vida e à saúde”
(Artigo 7), “à liberdade, ao respeito e à dignidade” (Artigo 15), e “à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária “ (Artigo 4). A semelhança com o que vimos na DUDH é nítida.
No caso do ECA, valores universais como vida e liberdade são colocados lado a lado com os
direitos mais específicos e práticos, como saúde, alimentação, educação, esporte, etc. De certa forma,
o ECA torna explícita a relação entre a primeira e a segunda partes da DUDH. Outro desenvolvimento
interessante que o ECA apresenta, como implicação da DUDH, é o objetivo de tais valores e direitos. A
proteção garantida pelo ECA a crianças e adolescentes tem o seguinte objetivo: “[assegurar] todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e
social, em condições de liberdade e de dignidade” (Artigo 3).
O bom desenvolvimento humano, seguindo os valores apresentados pela DUDH, a CF/88 e o
ECA, somente pode ser alcançado num ambiente que garanta, pelos direitos humanos, oportunidades
e facilidades para todos. Dessa forma, também, o ECA trabalha com o conceito de autoafirmação de
grupos minoritários, vulneráveis, cuja identidade particular é alvo de menosprezo e violência. A criança
e o adolescente são tratados como “sujeitos de direitos civis, humanos e sociais” (Artigo 15). E o ECA
ainda faz questão de usar critérios anti-discriminatórios iguais aos da DUDH, reforçando a identidade
da infância e da adolescência como dignas de valorização igual à de outras identidades: “Os direitos
enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento,
situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de
desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou
outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem” (Artigo 3).
A CF/88 faz uma separação semelhante a que temos na DUDH ao, primeiro, mencionar os valores
universais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Artigo 5), para depois falar
de direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição” (Artigo 6). Um dos fundamentos mais significativos da DUDH é o
reconhecimento de que a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade. Isso se torna uma marca tanto da
CF/88 quanto do ECA. No artigo 226, a CF/88 afirma e garante: “A família, base da sociedade, tem especial proteção
do Estado”. No artigo seguinte, vemos uma relação bem interessante entre direitos humanos, família, Estado e as
relações de prioridade: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Nesse importante artigo,
a CF/88 estabelece, de forma mais integrada do que a DUDH, que os direitos humanos, especialmente no caso de crianças
e adolescentes, somente poderão ser garantidos por um esforço conjunto da família, da sociedade e do Estado, e que esses
três atores sociais devem fiscalizar um ao outro a fim de impedir a violação de direitos.

No quarto artigo do ECA, repete-se a mesma redação do artigo 227 da CF/88. Mas o ECA apresenta,
em outros artigos, uma linguagem ainda mais coerente com os valores—e não necessariamente com a
redação—da DUDH. Quero chamar a atenção do leitor para duas expressões que aparecem no ECA. A
primeira está no artigo 7, que diz: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,
mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento
sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. A parte final é de importância singular. O ECA
usa a linguagem de “desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Ainda
mais do que no caso da DUDH, o ECA utiliza uma linguagem de valores que não impõe práticas específicas,
dando espaço para que cada família, comunidade e cultura apliquem esses valores adequadamente ao
seu contexto. A base específica que busca evitar abusos está lá (“o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”), mas os valores “universais” são abertos para serem preenchidos por
práticas locais, particulares, contextuais.
Algo semelhante acontece com a segunda expressão que aparece no ECA, que merece nossa
atenção, e está em seu artigo 19: “É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de
sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária,
em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. A expressão, obviamente, é “desenvolvimento
integral”. Esse artigo é ainda mais relevante por garantir um direito que não aparece nem na DUDH nem
na CF/88: a convivência familiar em ambiente que garanta o desenvolvimento integral da criança e do
adolescente é prioritária à proteção da família de origem.
Tanto a DUDH quanto a CF/88 apresentam o critério de que um direito não pode ser garantido
quando este justifica abusos de outros direitos. Mas nenhum dos dois documentos “resolve” possíveis
impasses. O ECA oferece um importante exemplo de como aplicar os valores dos direitos humanos
quando certas práticas locais e contextuais preenchem tais valores de formas abusivas. No caso
específico do ECA, o que temos é o impasse entre o direito de proteção da família e o direito de proteção
da criança e do adolescente contra “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”. A solução oferecida pelo ECA é a garantia da proteção da criança e do adolescente,
e a garantia do convívio familiar por meio de família substituta. Com tal solução, o ECA eleva o direito
à vida e ao “desenvolvimento integral” como valores “universais”, enquanto continua reconhecendo
que tais valores somente encontram sua expressão e fundamento em experiências locais, particulares,
contextuais, especialmente mediadas pela família como base da sociedade.
Ao contemplar a necessidade de famílias substitutas a fim de garantir o “desenvolvimento
integral” de algumas crianças e adolescentes, o ECA reconhece práticas locais, particulares e contextuais
de “apadrinhamento” e adoção que são conhecidas na humanidade em culturas antiqüíssimas, como na
antiga Babilônia, ainda no segundo milênio a.C., e em culturas contemporâneas, como a brasileira dos
séculos XIX e XX.

 

HUMANITARISMO E O TRABALHO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL CRISTÃO NO BRASIL

Como muitos reconhecem, a DUDH não tem caráter legal e não pode ser imposta sobre nenhuma nação
soberana. No entanto, esse tipo de documento internacional exerce um papel relevante na construção de
uma sociedade melhor. Primeiro, esses documentos respondem a eventos que destroem a humanidade
como um todo e certos grupos de status minoritário de forma específica. Assim, esses documentos
repudiam tais eventos e práticas e sugerem uma forma de construirmos uma sociedade melhor.
Segundo, esses documentos expressam valores que são reconhecidos pela maioria das nações, culturas,
comunidades e famílias. Assim, esses documentos se tornam um bom ponto de partida para se pensar
a construção de uma sociedade melhor. Terceiro, esses documentos tendem a ser assinados pela maior
parte das nações e tal assinatura se torna um critério de prestação de contas internacional. Quarto, esses
documentos influenciam as legislações nacionais, como vimos claramente no caso brasileiro da CF/88
e ECA. Mesmo quando não há uma influência legislativa, ainda pode existir uma influência política que
contribui na delineação de políticas públicas.
Para nós, cristãos envolvidos em serviços de assistência social, as atividades que exercemos não
estão fundamentadas na DUDH, na CF/88 ou no ECA. Nosso fundamento está em nossa consciência de
fé. Contudo, nossas atividades não são contrárias a esses documentos, nem podem existir, no âmbito
público, sem o apoio e corroboração da legislação. A DUDH é uma forte aliada em nosso trabalho e não
um inimigo a ser combatido. A CF/88 e o ECA são ainda mais, pois podemos corroborar nosso trabalho
a partir da legislação de nosso país. Isso não quer dizer que em certos assuntos, nossa consciência de fé
e esses documentos não entram em conflito. Mas quer dizer que a solução desses conflitos não deve ser
combativa, e sim colaborativa, pensando em formas adequadas de interpretar esses documentos, e como
“preencher” seus valores a partir de práticas adequadas a nossa consciência de fé, já que o propósito
desses documentos é exatamente esse. Para nós, cristãos, que acreditamos na fraternidade universal da
humanidade e da formação de uma identidade familiar prioritária à família de origem, na participação
do Corpo de Cristo, o exemplo do direito do convívio familiar, por meio de família substituta, garantido
no ECA, é uma boa ilustração de como nossa consciência de fé, os direitos humanos e a legislação podem
dialogar bem, encontrando formas de serem praticadas para o bem comum na proteção dos mais
vulneráveis.
Por todo o Antigo e Novo Testamentos, o pertencimento à família de Deus, como forma de
estabelecer um verdadeiro ambiente familiar, comunitário, nacional e global, para o “desenvolvimento
integral” de cada indivíduo e comunidade, não está em laços de consangüinidade, ou seja, não depende
da família de origem.

Obviamente, as famílias de origem, especialmente no Antigo Testamento, são o meio comum
e esperado para o pertencimento à família de Deus e o estabelecimento desse ambiente propício ao
“desenvolvimento integral”. No entanto, esse não é o único meio, e o valor do pertencimento à família
de Deus supera a lealdade ou o direito devido à família de origem. O cuidado paternal de Deus para
com todos os seres humanos extrapola qualquer tipo de limite que a família de origem de Abraão, por
exemplo, possa ter. A família de Deus não se restringe à consangüinidade da família de Abraão nem
no Antigo Testamento, nem no Novo. Onde quer que a família de Deus ofereça cuidado familiar a uma
pessoa, ou seja, um cuidado que garanta “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”,
protegendo-a de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”,
ali existe uma expressão e um convite de pertencimento à família divina. Podemos ver isso na narrativa
de Rute, a mulher moabita que por meio de um cuidado familiar mútuo entre ela e Noemi, se tornou
parte da família de Deus. Podemos ver isso na própria identidade de Israel como um todo, que nunca
foi exclusivamente uma identidade genética ou étnica, mas de aliança. Os cuidados listados em Mateus
25.31–46, por meio do qual Jesus, o Rei, irá julgar todas as nações, são cuidados típicos da lealdade
e da generosidade esperada entre parentes e, por isso, são cuidados que expressam e convidam ao
pertencimento da família de Deus, por meio de Jesus. Por fim, todo o esforço teológico paulino pode
ser resumido em sua declaração de que “todos são filhos de Deus pela lealdade de Jesus, o Rei (Carta
aos Gálatas 3.26). E tudo isso se dá por meio de uma família “substituta” que promove, acima de tudo,
vida e vida em abundância a todos, especialmente os mais vulneráveis que têm sua identidade e valor
menosprezados.
Nessa família de Deus, em Jesus, tem valores universais que também são preenchidos pela
experiência particular de seus membros. A universalidade, aqui, se fundamenta na diversidade dos
particulares. A fraternidade universal é experimentada e o plano divino universal é cumprido por meio
de famílias particulares que, como membros diversos de um mesmo corpo, o corpo de Cristo, formam
uma única família de Deus.
Na próxima edição da ABBA-PAI, vamos expandir mais a relação entre os direitos humanos e fé
a cristã. Demonstraremos as fontes culturais, especialmente religiosas e filosóficas, por trás dos valores
dos direitos humanos expressos na DUDH. A fé bíblica, certamente faz parte dessa tradição, ainda que
não seja a única. Mas a partir da fé bíblica, como parte das fontes que produziram, direta e indiretamente,
os valores dos direitos humanos e da DUDH, falaremos sobre a relação entre missão cristã e os direitos
humanos. Até a próxima.

  - EQUIPE ABBA

 

Crianças em Guerra

Nesta edição da ABBA-PAI, falamos sobre como a experiência de vida da maioria das crianças brasileiras vivendo em favelas é comparável ao ambiente de guerra. A comparação não é forçada. As crianças brasileiras expostas tanto à violência doméstica quanto à violência armada nas comunidades em que vivem têm desenvolvido traumas iguais aos traumas de veteranos de guerra. Trata-se de um trauma gerada por experiências que ameaçam sua própria existência. Infelizmente, diante disso, o que resta a essas crianças é lutar, ou fazer guerra. Se você quer entender melhor esse ciclo da violência e como combatê-lo, convidamos você à leitura desta nova edição da ABBA-PAI, que pode ser feita aqui.

ABBA-PAI: Nossos pequenos cérebros em formação

Há alguns anos, a ABBA vem produzindo uma carta informativa chamada ABBA-PAI. Desde o ano passado, decidimos utilizar esse veículo para elaborar estudos pertinentes à area de atuação da ABBA, ou seja, a assistência social. A partir desta edição, utilizaremos esse espaço do blog para publicarmos a ABBA-PAI.

Começamos por essa edição, pois se trata da primeira parte de uma série de três estudos sobre a formação de nossa mente e a formação de nossa sociedade.

“Não existe uma forma mais precisa de revelar a alma de uma sociedade do que o modo como esta trata suas crianças” (Nelson Mandela).

A formação de nossas mentes depende do mundo a nossa volta e nossas mentes formam o mundo a nossa volta. Esse é um assunto bastante abrangente e complexo. Por isso, queremos dedicar um bom tempo pensando sobre isso. Nas próximas três edições da ABBA-PAI, falaremos sobre a formação, a (de)formação e a (re)formação de nossa mente. Querendo ou não, o futuro de nossa sociedade, até da humanidade, depende do modo como tratamos nossas crianças. Leia nesta ABBA-PAI sobre a formação de nossas mentes durante os primeiros anos de vida, a importância do ambiente familiar e dos vínculos afetivos, e o que tipo de sociedade resulta disso.

Link para leitura: https://tinyurl.com/yb8z2zta

ABBA-PAI: Nossos Pequenos cérebros em (de)formação

Esta é a segunda parte de uma série de três estudos que estamos produzindo sobre a relação entre desenvolvimento neurológico e sociedade, ou entre nossas mentes e nosso mundo. Nosso desenvolvimento neurológico acelerado nos primeiros quinze meses após o parto é uma dádiva que deu aos seres humanos maiores habilidades para sobreviver.

Nós vimos na última ABBA-PAI (leia aqui) que essa dádiva é o que faz com que nosso desenvolvimento neurológico aconteça para formarmos boas relações sócio-afetivas e vivermos bem em sociedade, nos tornando membros cooperativos, produtivos, solidários e empáticos nas comunidades em que estamos inseridos. Assim, forma-se uma sociedade segura, justa, e cultural e economicamente vibrante. No entanto, nossa plasticidade neurológica em conformidade com o ambiente, nesse primeiro período de desenvolvimento, tem um efeito colateral. Experiências negativas e até traumáticas de negligência e violência podem determinar o desenvolvimento neurológico do bebê pelo resto de sua vida.

Se você quer saber quais as consequências disso, tanto no âmbito individual quanto social, separe um tempo para ler este estudo. As informações apresentadas aqui devem ser consideradas com profundidade por qualquer pessoa interessada no bem de crianças em situação de risco e vulnerabilidade social. Leia aqui.

Vida fácil na rua?

O que leva alguém a preferir ficar na rua do que em casa ou mesmo em um abrigo?

“Eles querem a vida fácil”, dizem algumas pessoas que torcem o nariz para as pessoas em situação de rua, como ouvimos recentemente da primeira dama de São Paulo, num vídeo que viralizou. Mas qual é a facilidade de estar totalmente exposto e vulnerável?

Esse julgamento é ainda mais enfático quando aqueles que têm essa opinião veem as pessoas dormindo na rua durante o dia. “Vagabundos”, muitos pensam. Mas não consideram que, sem ter um lugar seguro para dormir, não dá para repousar quando o medo de ser roubado, esfaqueado ou queimado vivo durante a noite não é um exagero, mas uma preocupação real.

Embaixo deste viaduto, na região central de São Paulo, um grupo de moradores de rua se abriga. Como uma forma de servir e amenizar essa situação, fazemos mutirões de limpeza. Na semana passada, ao atender o grupo que estava ali, descobrimos que muitos deles estavam com sarna. Compramos a medicação, limpamos o lugar, trocamos os cobertores e roupas deles.

“Estou cansado, tia. Usei droga a noite toda para a dor passar”. Isso não é conforto. Os meninos nos contam que não gostam de hospitais, porque muitas vezes são maltratados quando buscam socorro sozinhos. Alguns, inclusive, relatam terem sido amarrados quando foram internados.

Quando o próprio sistema parece fazer de tudo para acabar com a sua existência porque não vê você como um cidadão, mas como um problema, a quem se recorre?

É aqui que nós buscamos nos colocar: como um lugar seguro, com pessoas que querem estar perto deles nos momentos de necessidade e também nos de alegria. Ser gente de perto.

Convivemos com a falta de misericórdia neste mundo. A prática da empatia, uma palavra tão na moda nas redes sociais, ainda continua em falta.

Queremos ser aqueles que enxergam estes “zumbis” como o que eles realmente são: pessoas com histórias que não conhecemos individualmente, mas cujo final Deus quer mudar para melhor.

Ouvimos de uma criança recentemente que ela se considera um lixo. E está bem claro que esse pensamento não é fruto de uma imaginação fértil, mas sim reflexo do tratamento que lhe é dado constantemente. A invisibilidade, o medo e a agressão são responsáveis por isso. E é justamente esse pensamento que queremos mudar.

Como bem disse Edmund Burke: “Para que o mal triunfe basta que os bons não façam nada”. Por isso, precisamos ser luz neste mundo. Cada uma dessas pessoas é preciosa para Deus. E deve ser para nós também.

Quando publicamos nas redes sociais sobre a situação das crianças na rua, recebemos não só comentários perguntando sobre o que fazer, mas também pessoas que dizem já acompanhar o trabalho da ABBA indignadas com uma realidade de crianças na rua que elas não conheciam.  Muita gente quer logo mobilizar, militar e despertar a sociedade ou as autoridades. Isso tudo tem valor e lugar, mas não antes de um compromisso de empatia que se coloca do lado dessas pessoas, de se tornar gente de perto. Fica, então, um convite para um primeiro passo: conheça o trabalho da ABBA e se envolva.

Acolher para a vida

Ao olhar para a criação divina, é possível verificar que Deus criou as relações humanas de tal forma que a família é o lugar saudável onde uma criança deve estar para poder ser nutrida e educada, a fim de que possa crescer e se desenvolver como ser humano. A família humana não é algo aleatório, mas sim um reflexo daquilo que é a imagem e semelhança do próprio Deus. Todas as referências existentes na Bíblia que ilustram Deus como Pai e Jesus como Filho são evidências de que Deus criou a humanidade de forma a espelhar sua pessoa.

Como reflexo dessa realidade, é possível perceber na maternidade e paternidade uma das mais belas formas de se ver a imagem e a semelhança de Deus. Contudo, ser pai e mãe daqueles que são carne da sua carne não é exatamente o que Deus fez pela humanidade. Deus se tornou Pai daqueles que não são como ele é, assim como Jesus era, mas os adotou para que se tornassem como seu verdadeiro Filho (Romanos 8.29).

Um princípio nos escritos bíblicos, seja no Antigo ou no Novo Testamento, é que Deus inclui em sua família pessoas que antes estavam em situação de orfandade, abandono, solidão e até inimizade com ele. Um exemplo claro de Deus se identificando com órfãos e viúvas está em Salmos 68.5-6, que diz que Deus é o Pai que coloca o solitário em família. Vale refletir que ser salvo é ser adotado por Deus e entrar no relacionamento último e íntimo existente na própria Trindade.

O órfão sofre muitas injustiças pelo fato de estar fora do contexto familiar, mas o próprio Deus “faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe roupa e comida” (Deuteronômio 10.18). Por isso ele nos instrui: “Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva” (Isaías 1.17).

Viver em família é o plano de Deus e, portanto, direito de toda criança e adolescente nessa terra. No entanto, milhões de crianças crescem sem o benefício de relacionamentos permanentes com adultos amorosos e carinhosos. Suas famílias foram desfeitas devido à pobreza, doença, morte, guerras, marginalização, violência, abuso e negligência.

Cristãos comprometidos com o Reino de Deus, coerentes com o evangelho, que desejam ardentemente ser relevantes nesta geração, têm o privilégio e a oportunidade de serem a encarnação do amor de Deus na transformação de histórias trágicas em histórias de amor por meio do acolhimento familiar, da adoção, do voluntariado, do suporte, do ofertar e de outras intervenções.

Entre a morte e a vida

Maio Laranja serve para nos conscientizar e combater a violência contra crianças e adolescentes no Brasil, mais especificamente casos de abuso e exploração sexual. Nesse contexto, vale a pena pensar sobre o que está em jogo quando falamos sobre crianças em situação de risco e vulnerabilidade social. Como demonstram as estatísticas de violência contra a infância brasileira, estamos lidando com uma questão de vida e morte. Ainda que para muita gente isso pareça muito dramático ou exagerado, não é. Ontem (19/05), por exemplo, vimos, mais uma vez, a morte de um garoto de 14 anos, baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro. João Pedro estava em casa, brincando! Não estava envolvido com o tráfico, era evangélico, e a morte o tomou ou foi lançada contra ele por diversos fatores que nada têm a ver com suas decisões na vida. Nesse devocional, o leitor poderá entender que quando falamos de situação de risco e vulnerabilidade social estamos falando de morte e vida, assim como podemos ver na Bíblia.

Vida e morte, na Bíblia e hoje, não podem ser medidas pelos batimentos cardíacos ou a falta deles. É possível estar vivo e ainda experimentar a morte. É aqui que entra a experiência e a situação de risco e vulnerabilidade social. No portfólio da ABBA, que você pode acessar aqui, desenvolvemos uma descrição dessa condição e eu vou resumir algumas coisas aqui. Para muitos é somente uma questão de pobreza e vida nas favelas, mas é muito mais do que isso.

As duas perguntas que precisamos fazer são: Vulnerável a quê? Risco de quê? A vulnerabilidade social significa uma condição de susceptibilidade latente ao ambiente social em que se vive. É claro que todos nós somos susceptíveis ao nosso meio social. Existe uma diferença, porém, entre meios que impõem maiores dificuldades para superá-los e, meios menos desafiadores. Para piorar a situação, meios mais desafiadores tendem a ser mais inóspitos para o desenvolvimento humano. Em outras palavras, o meio social afeta o desenvolvimento de nossos recursos emocionais e psicológicos para adquirirmos as capacidades necessárias para superar os desafios impostos por ele. Esses desafios têm a ver com escassez de recursos materiais, mas também com um meio social que impõe escassez de recursos internos. Essa é uma situação de vulnerabilidade social. Quem está em tal condição tem pouquíssimas oportunidades e escassas possibilidades de adquirir as habilidades necessárias para se ter uma vida diferente daquela que se vive no meio em que se está inserido.

Qual seria o risco, então? Trata-se do risco de experimentar situações que as coloquem mais próximas do colapso financeiro, familiar, emocional e psicológico, podendo chegar ao ponto do risco de morte. Esse colapso se experimenta em doenças, marginalização, drogadição, desestrutura familiar, fome, institucionalização, violência, etc. Num espectro, o risco pode variar entre uma condição que limita seriamente o pleno desenvolvimento humano até o ponto em que se tem o próprio risco de morte. Dentro desse espectro, o que se coloca entre a pessoa e a experiência desse colapso a perda de emprego, um acidente doméstico, uma gravidez inesperada, um divórcio, etc. Muitas vezes trata-se de uma situação que poderia ser superada sem grandes dificuldades caso houvesse mais recursos externos e internos. Para alguns, a vulnerabilidade é profunda o suficiente para que apenas um imprevisto os leve a experimentar os riscos citados acima. Para muitos, a morte cerceia sua vida de tal forma que basta uma pequena mudança para ceifá-la de vez. Ou, como no caso de João Pedro, basta viver em certo lugar, para que a morte atravessa sua porta e o atinja.

Tudo isso encontra algumas correspondências interessantes com a visão da Bíblia sobre Deus, a criação, a vida e a morte. O espectro entre situações que limitam o pleno desenvolvimento humano até situações de risco de morte poderia mudar para uma linguagem mais bíblica: vida, de um lado, e morte do outro. Deus é um Deus de vida, que cria um ambiente que gera e sustenta a vida, enquanto a ausência de Deus e suas ações criam um ambiente incapaz de gerar e sustentar a vida, portanto, um lugar de morte. Isso fica bem claro em Gênesis 1, que começa com um estado de vazio e deformidade, ou seja, um ambiente sem vida, descrito pela expressão hebraica תֹהוּ וָבֹהוּ (tohu vabohu), e é concluída com um estado vibrante com vida por todo lado.

O estado de morte, na Bíblia, não é necessariamente uma condição após o ser vivente dar seu último suspiro. Na verdade, é possível viver em estado de morte. Uma palavra importante no Antigo Testamento para o lugar de morte é שְׁאוֹל (sheol). Vejam Salmos 30.3: “Oh, SENHOR, você fez subir minha vida do Sheol, me conservou vivo para não descer à cova”. Ou, Salmos 88.3: “Minha vida é repleta de males, meu ser toca no Sheol”. Ou Salmos 116.3: “As armadilhas da morte me cercam, as angústias do Sheol se apoderam de mim”. Essas condições de vida descritas pela presença iminente do Sheol é uma ameaça à vida. O contexto de tais condições, geralmente, é de desordem social, violência e escassez de recursos. A presença do Sheol, portanto, é uma situação de risco e vulnerabilidade social.

Outra palavra hebraica importante aqui é מוֹת /מָוֶת (motmavet). Trata-se do termo comum para morte. No entanto, a morte não é meramente um estado, pois ela tem certa personalidade. Tanto é que  מוֹת (mot) é um termo que se refere a um deus da morte e do submundo nas mitologias do antigo Oriente Próximo. Para entender a morte como personalidade na tradição bíblica, temos um exemplo interessante em Jeremias 9.21: “Pois subiu [obviamente vindo do submundo] a morte [מָוֶת] pelas nossas janelas, entrando em nossas cidades, e arrancou crianças das ruas e jovens da praça”. Esse texto é bastante significativo por dois motivos. O primeiro é que a morte tem caráter ativo. Ela penetra a esfera da vida humana, especificamente a sociedade, a fim de arrancar a vida de pessoas e levá-las para o seu domínio. O segundo é que Jeremias destaca crianças e jovens como aqueles que primeiro são arrancados pela morte. Crianças e jovens, aqui, são um grupo de maior risco e vulnerabilidade social, algo que continua sendo a realidade em nosso contexto, como a morte de João Pedro deixa claro. Mais interessante ainda, é que o texto de Jeremias fala da morte entrando por nossas janelas. Em nosso contexto, a morte que alcança nossas crianças e adolescentes é uma ameaça que, na maioria dos casos, vem de dentro de suas próprias casas. A violência sofrida por crianças e adolescentes brasileiros é, na vasta maioria dos casos, perpetuada por seus familiares e conhecidos, no ambiente do lar. Mesmo quando isso não acontece, como no caso de João Pedro que foi baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro, estar em casa não significa ter segurança alguma.

Por outro lado, vamos ver como o Evangelho de João faz uso do termo vida. Um texto muito conhecido é João 10.10: “Eu vim para lhes dar vida, uma vida plena, que satisfaz” (NVT). Essa “vida abundante” e “vida eterna”, no Evangelho de João, está atrelada à revelação de quem Jesus é. O modo de revelação da identidade de Jesus como Filho e Deus encarnado se dá por vários episódios em que Jesus oferece suprimentos materiais em situações da necessidade humana: vinho (2.1-11), água (4.4-42) e pão (6.1-71). Mais interessante é que a oferta de elementos materiais por Jesus é mais do que isso. O próprio Jesus é “a água VIVA”, o “pão da VIDA”. Jesus oferece esses elementos materiais, mas ele mesmo é a dádiva oferecida. Há uma convergência aqui entre a realidade humana, material, física, e a realidade divina, espiritual. A vida é oferecida pelos elementos materiais que saciam as necessidades humanas, ou seja, aquilo que, de fato, sustenta o corpo humano. Mas como essa oferta é feita pela graça de Deus, no serviço de Jesus como a própria dádiva oferecida, esses elementos também resultam em vida abundante. A materialidade deixa de ser mera materialidade diante de quem a oferece como expressão da graça divina na comunhão com aquele que se revela como o próprio Deus. E João nos diz que todos aqueles que desfrutam desses elementos, recebendo a própria dádiva, que é Jesus, recebem o direito de se tornarem filhos de Deus (Jo 1.12). Jesus, a encarnação de Deus, é o Deus que dá vida, mesmo pelo simples ato de saciar as necessidades humanas daqueles que mais precisam.

Milhões de brasileiros, muitos deles crianças e adolescentes, vivem em situação de risco e vulnerabilidade social. Para eles, a morte é uma realidade diária, seja pela violência física e sexual infligida contra eles, ou pela escassez de recursos materiais e recursos internos. A morte quer arrancar suas vidas e o Sheol parece ser o ambiente em que vivem, como na descrição do salmista. Isso acontece quando um de seus conhecidos ou amigos é baleado, como aconteceu com o João Pedro; ou nas marcas de feridas purulentas que muitos carregam por falta de saneamento básico; ou no prato vazio, literalmente, ou de nutrientes, quando só têm miojo para comer; ou no córrego correndo como uma torrente ao lado de seu barraco; ou no soco que sua mãe leva do namorado; ou quando seu pai ou mãe os espancam; ou quando algum familiar ou conhecido os abusa sexualmente; ou quando o patrão atrasa o salário de seus pais; ou quando são deixados com vizinhos, ainda bebês, porque a mãe foi usar droga na rua; ou por ter sido simplesmente abandonado no hospital por sua mãe. Para todos esses, a igreja tem muito a oferecer. Como corpo de Cristo, podemos oferecer os recursos materiais e a proteção física que essas pessoas precisam para suprir suas necessidades, para dar-lhes o que precisam para viver. Mas como corpo de Cristo, devemos fazê-lo num ambiente de real encontro, de real revelação da dádiva divina, o próprio Jesus, que se manifesta nesse ato, nessa oferta, concedendo a essas pessoas a possibilidade de o receberem nesses elementos e terem vida abundante e serem chamados filhos e filhas de Deus.

Conhecimento de Deus

Teologia é a disciplina sobre o conhecimento de Deus. Para a maioria de nós, teologia significa ler, estudar, escrever, ou seja, se dedicar intelectualmente para buscar o conhecimento de Deus. Ainda que esse exercício intelectual tenha seu valor, não parece que no pensamento bíblico o conhecimento de Deus tenha a ver com isso.

O livro de Jeremias, diferente de outros livros proféticos, apresenta muito de seu conteúdo como um tipo de debate com outros profetas, escribas, e a elite sacerdotal de Judá que se encontrava no templo e no palácio de Jerusalém. Na prática, o debate é sobre se haveria salvação ou destruição para Judá e seu povo. De um lado, Jeremias profetiza que a destruição está à porta; do outro lado estão os outros profetas, escribas e sacerdotes, dizendo que Deus os salvaria. Mas no fundo desse debate no livro de Jeremias está uma questão muito profunda: o que é a verdade e como podemos conhecê-la?

Tanto a verdade quanto a falsidade, no decorrer do debate de Jeremias com seus oponentes, é mais do que uma questão de idéias e conceitos, ou seja, a verdade e a falsidade não são meras palavras. Trata-se, de fato, de uma questão sobre a vida verdadeira e a vida falsa. Um bom exemplo disso está na profecia de Jeremias no templo de Jerusalém no capítulo 7. Ele parece estar falando somente a respeito de palavras falsas quando diz: “Não confiem em palavras falsas, dizendo: ‘Templo do Senhor! Templo do Senhor! Este é o templo do Senhor!’” (v. 4 ). Mas vejam o que vem antes e o que vem depois: “Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: Corrijam a sua conduta e as suas ações, e eu os farei habitar neste lugar” (v. 3); “Mas se de fato emendarem os seus caminhos e as suas ações, se de fato praticarem a justiça, cada um com o seu próximo; se não oprimirem o estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramarem sangue inocente neste lugar, nem seguirem outros deuses para o próprio mal de vocês, eu os farei habitar neste lugar, na terra que dei aos pais de vocês, desde os tempos antigos e para sempre” (vv. 5-7). O que parece ter somente a ver com palavras, na verdade, é sobre um modo de vida. A falsidade das palavras é o resultado de uma vida falsa. Mas o que torna essa vida falsa? No versículo 8, Jeremias diz algo muito importante: “Eis que vocês confiam em palavras falsas, que não servem para nada”. O que torna uma vida falsa ou verdadeira é se esta tem algum benefício. Isso parece subjetivo e até pragmático demais, mas não é.

Aqui podemos começar a dar uma resposta para as duas perguntas fundamentais: o que é a verdade e como podemos conhecê-la? Uma parte da primeira resposta é que a verdade é algo que gera benefício. Com essa parte da resposta já sabemos que Jeremias não entende a verdade como uma ideia, uma essência, e sim como algo concreto sobre a vida.

Precisamos cavar um pouco mais para qualificar essa primeira parte da resposta. Na teologia, o conhecimento da verdade e o conhecimento de Deus são interdependentes, quando não são a mesma coisa. O mesmo acontece em Jeremias, mas não se trata de um conhecimento abstrato sobre a essência do ser divino. Trata-se de conhecer o modo de agir de Deus, sua justiça e seus mandamentos. Vejam essa comparação. No capítulo 5, Jeremias diz: “Eles nada sabem. Não conhecem os caminhos do Senhor, não entendem o que a justiça de Deus exige” (v. 4). Já no capítulo 9, temos um indício do que seja conhecer a Deus, seus caminhos, sua justiça e seus mandamentos. Jeremias diz o seguinte: “… me conhecer e saber que eu sou o Senhor e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor” (v. 24).

Assim, uma resposta provisória para nossas duas perguntas ficaria assim: A verdade é aquilo que traz algum benefício e nós a conhecemos atentando, percebendo, reconhecendo o modo de agir justo e misericordioso de Deus. Com esse fundamento, podemos tratar de um texto que compacta nossa discussão até aqui e nos encaminha para mais algumas qualificações fundamentais:

“Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me? declara o Senhor” (Jeremias 22.16).

Essa fala profética de Jeremias está apontando para a vida de Josias, rei de Judá, famoso pela renovação da aliança e observância da lei, conforme aparece em 1Reis 22-23. A profecia de Jeremias aqui é uma exortação ao filho de Josias, Jeoaquim, que rompeu com os caminhos de seu pai, e precedeu a derrota de Judá e a destruição de Jerusalém pelos babilônios.

As três partes desse versículo apontam exatamente para as três partes que venho tentando desenvolver até aqui: a verdade tem a ver com algo que traz algum bem (“tudo corria bem”); o conhecimento da verdade tem a ver com conhecer os caminhos de Deus (“não é isso que significa conhecer-me?”); e esse conhecimento é concreto e prático, e não está no nível das idéias e das essências (“ele defendeu a causa do pobre e do necessitado”). Mas a forma e o contexto dessa profecia vai nos ajudar a chegarmos numa conclusão mais acertada.

Primeiro, um fundamento importante que aparece nessa profecia é o termo “conhecimento” (hebraico, daʿat). Não é nenhum segredo que esse termo, assim como o verbo cognato yādaʿ, quando se refere a pessoas, não é sobre adquirir e processar informações. Conhecer alguém, aqui, significa ter um relacionamento profundo e um compromisso pessoal com o outro. É especialmente esse segundo elemento, o compromisso pessoal, que explica o motivo de o conhecimento de Deus não ter a ver com uma informação sobre sua essência, mas sobre seu modo de agir. Como seres humanos limitados, não temos acesso à essência do divino e nem é isso que Deus nos propõe. Nosso acesso à pessoa de Deus se dá na observação de seu relacionamento com a criação, em seu agir e caminhar. E nosso relacionamento com Deus se dá nessa ação e nesse caminho. É por isso que conhecer a Deus tem a ver com nosso relacionamento com ele. É, também, por isso que conhecê-lo e ter um relacionamento com ele se dá ao seguirmos o seu caminho, num compromisso prático de ações que correspondem ao seu modo de agir.

Segundo, um fundamento importante sobre os caminhos de Deus, ou seja, sobre quem ele é em relação à criação, aparece nesse texto. Na profecia de Jeremias, Josias conheceu a Deus porque ele defendeu a causa do pobre e do necessitado. Se seguirmos a lógica que estamos propondo aqui, então os caminhos de Deus têm a ver com a defesa da causa do pobre e do necessitado. Vejam como essa afirmação é verdadeira: “Cantem ao Senhor! Louvem ao Senhor! Porque ele salvou a vida do pobre das mãos dos malfeitores” (Jr 20.13). Percebam como um relacionamento pessoal com Deus aqui, mesmo no nível da adoração, está fundamentado em suas ações de justiça e misericórdia. Muito do que encontramos nas profecias de Jeremias, em sua disputa com seus oponentes sobre a salvação ou destruição de Judá, tem a ver com o modo como Deus se importa com os pobres e necessitados.

Terceiro, e por último, temos que pensar sobre como a verdade ou o conhecimento de Deus, em Jeremias, é definido por um resultado benéfico, ou seja, algo que gera benefícios. Esse texto de Jeremias 20.13 e o contexto de Jeremias 22.16 irão nos apontar para uma resposta. Temos dois detalhes importantes em Jeremias 20.13. O primeiro é que Deus deve ser louvado por salvar a VIDA do pobre. Então o conhecimento de Deus, e o que é a verdade, devem ter alguma coisa a ver com vida. O segundo é que a vida do pobre estava em risco por causa da ação de certas pessoas chamadas de malfeitoras. Com isso, podemos nos voltar para o contexto de Jeremias 22.16. Como foi dito, trata-se de uma exortação a Jeoaquim, filho de Josias. Se Josias conheceu a Deus por defender a causa do pobre e do necessitado, o que foi que Jeoaquim fez que demonstrou não conhecer a Deus? Jeremias diz o seguinte: “Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos, contrariando o direito! Que faz o seu próximo trabalhar de graça, sem lhe pagar o salário. Ai daquele que diz: ‘Edificarei para mim uma casa bem grande, com aposentos espaçosos.’ Então ele põe janelas na casa, forra as paredes com cedro, e a pinta de vermelho” (Jr 22.13-14).

Do ponto de vista de Jeoaquim, suas ações trazem benefício, não é mesmo? É um resultado bom, para ele, e para alguns poucos a sua volta. Contudo, não somente suas ações não trazem nada de bom para a multidão de pessoas que vivem debaixo de seu reinado, como suas ações são uma ameaça à vida dessas pessoas. O conhecimento de Deus, a verdade, não pode gerar injustiça e morte. O benefício gerado pela verdade pode ser definido como aquilo que é necessário para a vida de todos. O recurso básico para a vida é a água. Por isso, logo no começo do livro de Jeremias, a disputa entre verdade e falsidade, ou entre Deus e os ídolos das outras nações, é estabelecido a partir de uma metáfora envolvendo água: “abandonaram a mim, a fonte de água viva, e cavaram cisternas, cisternas rachadas, que não retêm as águas” (Jr 2.13). De certa forma, portanto, o benefício gerado pela verdade ou pelo conhecimento de Deus, é sobre a vida e o bem-estar de todos. Por isso a ênfase, em Jeremias, na questão da justiça aos pobres e necessitados contra malfeitores, ou opressores, como Jeoaquim, pois tais pessoas colocam a vida dos pobres e necessitados em risco. Em vez de gerar recursos para a vida de todos, gera escassez, insegurança, injustiça e morte.

Assim, podemos pensar porque o conhecimento de Deus está vinculado ao conhecimento da verdade, que está vinculado à justiça aos pobres e necessitados. A verdade tem a ver com como as coisas são, ou seja, com a realidade. Se o que conhecemos de Deus é que ele age com justiça, a fim de que haja vida, então ele deve ter criado a realidade de uma forma que siga essa lógica. É por isso que essa busca por sabedoria, força e riqueza (Jr 9.23), seguindo a lógica humana, causando injustiças que põe em risco a vida dos outros, é considerada por Jeremias como falsidade. Tal modo de viver no mundo não condiz com a realidade. O que condiz com a realidade é defender a causa dos pobres e necessitados, pois o mundo foi criado por aquele que age com “misericórdia, justiça e retidão na terra” (Jr 9.24). É por isso que a verdade, para Jeremias, é aquilo que resulta em algum bem. Esse bem é a vida de todos, especialmente daqueles que têm sua vida ameaçada.

Agora, portanto, podemos responder com mais exatidão as duas perguntas: o que é a verdade e como podemos conhecê-la? A verdade é tudo o que é capaz de gerar vida, especialmente aos que têm suas vidas mais ameaçadas. Podemos conhecer a verdade quando conhecemos a Deus e caminhamos com ele em seu compromisso de misericórdia, justiça e retidão na terra, pois é isso que gera vida. É por isso que Jeremias afirma: “Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me? declara o Senhor”.

Afeto para avida

O desenvolvimento humano vai além de seu aspecto físico. Você sabia que somos os únicos seres que necessitam da afetividade para sobrevivência? Sim, para sobrevivência! Se um bebê tem todas as suas necessidades fisiológicas, como higiene e alimentação, supridas, mas sem uma relação mínimia de afeto e interação humana, ele poderá morrer. Nosso desenvolvimento humano, o que definirá nossa sobrevivência ou não, depende de relações afetivas. Uma criança que não é tocada, acariciada, que não é olhada nos olhos, ou a quem palavras carinhosas não são direcionadas, não se desenvolverá plenamente.

Essa relação entre afeto e desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social tem sido amplamente pesquisada nos últimos 60 anos. O que se sabe, certamente, é que a privação de relações afetivas e seguras, principalmente na primeira infância, acarretará em danos permanentes. Um dos pontos de grande discussão nessa área é o impacto desses danos para a sociedade. O impacto social de indivíduos que cresceram privados de relações afetivas seguras tem a ver com educação, saúde, economia e até segurança pública.

Podemos perceber, por exemplo, a atenção que empresas têm com a capacidade emocional de seus candidatos. Sendo a capacidade emocional intrínseca a cada ser humano, as questões técnicas podem ser aprendidas. Contudo, danos causados no âmbito emocional são questões dificilmente alteradas na vida adulta, o que pode afetar diretamente o ambiente de trabalho e torná-lo mais ou menos colaborativo e produtivo. Portanto, a vida afetiva e seu impacto se torna cada vez mais importante e real no mundo em que vivemos.

Essa é uma realidade universal que afeta cada um de nós, como seres humanos. Da mesma forma, a privação e a negligência de relações afetivas seguras pode estar presente em qualquer contexto. Tal negligência, portanto, pode acontecer no âmbito de uma família que atenda muito bem as questões materiais de um bebê. Para esses casos, nosso alcance quanto sociedade e governo é limitado e quase impossível de enxergar e pontuar em tempo real. Existe, porém outra realidade social que, sim, está ao nosso alcance. Existem milhares de crianças que não somente são privadas de relações afetivas seguras, mas se encontram em situação de vulnerabilidade e negligência extrema, assim como sofrem com maus tratos. Essas crianças são normalmente encaminhadas para serviços de acolhimento institucional, como medida protetiva de seus direitos e de sua integridade física. Contudo, tal medida protetiva não supre adequadamente as necessidades afetivas dessas crianças.

Aqui não está sendo tratado a qualidade do acolhimento institucional, mas do formato dele e uma consequência de efeito colateral. No acolhimento institucional não é possível o atendimento afetivo personalizado de cada criança.

A legislação brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), contém artigos que garantem o direito da criança e do adolescente viverem em família. Sendo assim, além do serviço de acolhimento institucional, que apesar de adverso em alguns aspectos e ainda necessário, existe também a modalidade de acolhimento familiar, que é apontado como preferencial. Nessa modalidade, o atendimento à criança é feito de forma personalizada e integral por uma família. O acolhimento familiar é um trabalho social ao alcance de qualquer pessoa e família. É uma oportunidade real de atuação cidadã aonde a família abre, além de sua casa, o coração para acolher temporariamente uma criança, até que ela retorne a sua família de origem ou substituta. Ao se abrir dessa forma, a família cria oportunidades para potencializar um futuro diferente para a vida da criança. Essa experiência pode, de fato, moldar um adulto diferente numa sociedade tão carente de reais valores proporcionados pelo afeto.

Semeando amor poderemos colher um mundo com mais amor. Podemos contribuir para a formação de pessoas com suas questões afetivas e emocionais preservadas, desenvolvendo competências básicas para uma vida saudável, para um caminhar mais seguro e com autonomia. É bom que se frise que o amor e o cuidado são aprendidos e vitais à vida humana. Portanto, ensinemos isso no caminhar, doando na prática do dia a dia. Amor é a única coisa que cresce quando se doa.

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