Crianças em Guerra

Nesta edição da ABBA-PAI, falamos sobre como a experiência de vida da maioria das crianças brasileiras vivendo em favelas é comparável ao ambiente de guerra. A comparação não é forçada. As crianças brasileiras expostas tanto à violência doméstica quanto à violência armada nas comunidades em que vivem têm desenvolvido traumas iguais aos traumas de veteranos de guerra. Trata-se de um trauma gerada por experiências que ameaçam sua própria existência. Infelizmente, diante disso, o que resta a essas crianças é lutar, ou fazer guerra. Se você quer entender melhor esse ciclo da violência e como combatê-lo, convidamos você à leitura desta nova edição da ABBA-PAI, que pode ser feita aqui.

ABBA-PAI: Nossos pequenos cérebros em formação

Há alguns anos, a ABBA vem produzindo uma carta informativa chamada ABBA-PAI. Desde o ano passado, decidimos utilizar esse veículo para elaborar estudos pertinentes à area de atuação da ABBA, ou seja, a assistência social. A partir desta edição, utilizaremos esse espaço do blog para publicarmos a ABBA-PAI.

Começamos por essa edição, pois se trata da primeira parte de uma série de três estudos sobre a formação de nossa mente e a formação de nossa sociedade.

“Não existe uma forma mais precisa de revelar a alma de uma sociedade do que o modo como esta trata suas crianças” (Nelson Mandela).

A formação de nossas mentes depende do mundo a nossa volta e nossas mentes formam o mundo a nossa volta. Esse é um assunto bastante abrangente e complexo. Por isso, queremos dedicar um bom tempo pensando sobre isso. Nas próximas três edições da ABBA-PAI, falaremos sobre a formação, a (de)formação e a (re)formação de nossa mente. Querendo ou não, o futuro de nossa sociedade, até da humanidade, depende do modo como tratamos nossas crianças. Leia nesta ABBA-PAI sobre a formação de nossas mentes durante os primeiros anos de vida, a importância do ambiente familiar e dos vínculos afetivos, e o que tipo de sociedade resulta disso.

Link para leitura: https://tinyurl.com/yb8z2zta

ABBA-PAI: Nossos Pequenos cérebros em (de)formação

Esta é a segunda parte de uma série de três estudos que estamos produzindo sobre a relação entre desenvolvimento neurológico e sociedade, ou entre nossas mentes e nosso mundo. Nosso desenvolvimento neurológico acelerado nos primeiros quinze meses após o parto é uma dádiva que deu aos seres humanos maiores habilidades para sobreviver.

Nós vimos na última ABBA-PAI (leia aqui) que essa dádiva é o que faz com que nosso desenvolvimento neurológico aconteça para formarmos boas relações sócio-afetivas e vivermos bem em sociedade, nos tornando membros cooperativos, produtivos, solidários e empáticos nas comunidades em que estamos inseridos. Assim, forma-se uma sociedade segura, justa, e cultural e economicamente vibrante. No entanto, nossa plasticidade neurológica em conformidade com o ambiente, nesse primeiro período de desenvolvimento, tem um efeito colateral. Experiências negativas e até traumáticas de negligência e violência podem determinar o desenvolvimento neurológico do bebê pelo resto de sua vida.

Se você quer saber quais as consequências disso, tanto no âmbito individual quanto social, separe um tempo para ler este estudo. As informações apresentadas aqui devem ser consideradas com profundidade por qualquer pessoa interessada no bem de crianças em situação de risco e vulnerabilidade social. Leia aqui.

Vida fácil na rua?

O que leva alguém a preferir ficar na rua do que em casa ou mesmo em um abrigo?

“Eles querem a vida fácil”, dizem algumas pessoas que torcem o nariz para as pessoas em situação de rua, como ouvimos recentemente da primeira dama de São Paulo, num vídeo que viralizou. Mas qual é a facilidade de estar totalmente exposto e vulnerável?

Esse julgamento é ainda mais enfático quando aqueles que têm essa opinião veem as pessoas dormindo na rua durante o dia. “Vagabundos”, muitos pensam. Mas não consideram que, sem ter um lugar seguro para dormir, não dá para repousar quando o medo de ser roubado, esfaqueado ou queimado vivo durante a noite não é um exagero, mas uma preocupação real.

Embaixo deste viaduto, na região central de São Paulo, um grupo de moradores de rua se abriga. Como uma forma de servir e amenizar essa situação, fazemos mutirões de limpeza. Na semana passada, ao atender o grupo que estava ali, descobrimos que muitos deles estavam com sarna. Compramos a medicação, limpamos o lugar, trocamos os cobertores e roupas deles.

“Estou cansado, tia. Usei droga a noite toda para a dor passar”. Isso não é conforto. Os meninos nos contam que não gostam de hospitais, porque muitas vezes são maltratados quando buscam socorro sozinhos. Alguns, inclusive, relatam terem sido amarrados quando foram internados.

Quando o próprio sistema parece fazer de tudo para acabar com a sua existência porque não vê você como um cidadão, mas como um problema, a quem se recorre?

É aqui que nós buscamos nos colocar: como um lugar seguro, com pessoas que querem estar perto deles nos momentos de necessidade e também nos de alegria. Ser gente de perto.

Convivemos com a falta de misericórdia neste mundo. A prática da empatia, uma palavra tão na moda nas redes sociais, ainda continua em falta.

Queremos ser aqueles que enxergam estes “zumbis” como o que eles realmente são: pessoas com histórias que não conhecemos individualmente, mas cujo final Deus quer mudar para melhor.

Ouvimos de uma criança recentemente que ela se considera um lixo. E está bem claro que esse pensamento não é fruto de uma imaginação fértil, mas sim reflexo do tratamento que lhe é dado constantemente. A invisibilidade, o medo e a agressão são responsáveis por isso. E é justamente esse pensamento que queremos mudar.

Como bem disse Edmund Burke: “Para que o mal triunfe basta que os bons não façam nada”. Por isso, precisamos ser luz neste mundo. Cada uma dessas pessoas é preciosa para Deus. E deve ser para nós também.

Quando publicamos nas redes sociais sobre a situação das crianças na rua, recebemos não só comentários perguntando sobre o que fazer, mas também pessoas que dizem já acompanhar o trabalho da ABBA indignadas com uma realidade de crianças na rua que elas não conheciam.  Muita gente quer logo mobilizar, militar e despertar a sociedade ou as autoridades. Isso tudo tem valor e lugar, mas não antes de um compromisso de empatia que se coloca do lado dessas pessoas, de se tornar gente de perto. Fica, então, um convite para um primeiro passo: conheça o trabalho da ABBA e se envolva.

Acolher para a vida

Ao olhar para a criação divina, é possível verificar que Deus criou as relações humanas de tal forma que a família é o lugar saudável onde uma criança deve estar para poder ser nutrida e educada, a fim de que possa crescer e se desenvolver como ser humano. A família humana não é algo aleatório, mas sim um reflexo daquilo que é a imagem e semelhança do próprio Deus. Todas as referências existentes na Bíblia que ilustram Deus como Pai e Jesus como Filho são evidências de que Deus criou a humanidade de forma a espelhar sua pessoa.

Como reflexo dessa realidade, é possível perceber na maternidade e paternidade uma das mais belas formas de se ver a imagem e a semelhança de Deus. Contudo, ser pai e mãe daqueles que são carne da sua carne não é exatamente o que Deus fez pela humanidade. Deus se tornou Pai daqueles que não são como ele é, assim como Jesus era, mas os adotou para que se tornassem como seu verdadeiro Filho (Romanos 8.29).

Um princípio nos escritos bíblicos, seja no Antigo ou no Novo Testamento, é que Deus inclui em sua família pessoas que antes estavam em situação de orfandade, abandono, solidão e até inimizade com ele. Um exemplo claro de Deus se identificando com órfãos e viúvas está em Salmos 68.5-6, que diz que Deus é o Pai que coloca o solitário em família. Vale refletir que ser salvo é ser adotado por Deus e entrar no relacionamento último e íntimo existente na própria Trindade.

O órfão sofre muitas injustiças pelo fato de estar fora do contexto familiar, mas o próprio Deus “faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe roupa e comida” (Deuteronômio 10.18). Por isso ele nos instrui: “Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva” (Isaías 1.17).

Viver em família é o plano de Deus e, portanto, direito de toda criança e adolescente nessa terra. No entanto, milhões de crianças crescem sem o benefício de relacionamentos permanentes com adultos amorosos e carinhosos. Suas famílias foram desfeitas devido à pobreza, doença, morte, guerras, marginalização, violência, abuso e negligência.

Cristãos comprometidos com o Reino de Deus, coerentes com o evangelho, que desejam ardentemente ser relevantes nesta geração, têm o privilégio e a oportunidade de serem a encarnação do amor de Deus na transformação de histórias trágicas em histórias de amor por meio do acolhimento familiar, da adoção, do voluntariado, do suporte, do ofertar e de outras intervenções.

Entre a morte e a vida

Maio Laranja serve para nos conscientizar e combater a violência contra crianças e adolescentes no Brasil, mais especificamente casos de abuso e exploração sexual. Nesse contexto, vale a pena pensar sobre o que está em jogo quando falamos sobre crianças em situação de risco e vulnerabilidade social. Como demonstram as estatísticas de violência contra a infância brasileira, estamos lidando com uma questão de vida e morte. Ainda que para muita gente isso pareça muito dramático ou exagerado, não é. Ontem (19/05), por exemplo, vimos, mais uma vez, a morte de um garoto de 14 anos, baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro. João Pedro estava em casa, brincando! Não estava envolvido com o tráfico, era evangélico, e a morte o tomou ou foi lançada contra ele por diversos fatores que nada têm a ver com suas decisões na vida. Nesse devocional, o leitor poderá entender que quando falamos de situação de risco e vulnerabilidade social estamos falando de morte e vida, assim como podemos ver na Bíblia.

Vida e morte, na Bíblia e hoje, não podem ser medidas pelos batimentos cardíacos ou a falta deles. É possível estar vivo e ainda experimentar a morte. É aqui que entra a experiência e a situação de risco e vulnerabilidade social. No portfólio da ABBA, que você pode acessar aqui, desenvolvemos uma descrição dessa condição e eu vou resumir algumas coisas aqui. Para muitos é somente uma questão de pobreza e vida nas favelas, mas é muito mais do que isso.

As duas perguntas que precisamos fazer são: Vulnerável a quê? Risco de quê? A vulnerabilidade social significa uma condição de susceptibilidade latente ao ambiente social em que se vive. É claro que todos nós somos susceptíveis ao nosso meio social. Existe uma diferença, porém, entre meios que impõem maiores dificuldades para superá-los e, meios menos desafiadores. Para piorar a situação, meios mais desafiadores tendem a ser mais inóspitos para o desenvolvimento humano. Em outras palavras, o meio social afeta o desenvolvimento de nossos recursos emocionais e psicológicos para adquirirmos as capacidades necessárias para superar os desafios impostos por ele. Esses desafios têm a ver com escassez de recursos materiais, mas também com um meio social que impõe escassez de recursos internos. Essa é uma situação de vulnerabilidade social. Quem está em tal condição tem pouquíssimas oportunidades e escassas possibilidades de adquirir as habilidades necessárias para se ter uma vida diferente daquela que se vive no meio em que se está inserido.

Qual seria o risco, então? Trata-se do risco de experimentar situações que as coloquem mais próximas do colapso financeiro, familiar, emocional e psicológico, podendo chegar ao ponto do risco de morte. Esse colapso se experimenta em doenças, marginalização, drogadição, desestrutura familiar, fome, institucionalização, violência, etc. Num espectro, o risco pode variar entre uma condição que limita seriamente o pleno desenvolvimento humano até o ponto em que se tem o próprio risco de morte. Dentro desse espectro, o que se coloca entre a pessoa e a experiência desse colapso a perda de emprego, um acidente doméstico, uma gravidez inesperada, um divórcio, etc. Muitas vezes trata-se de uma situação que poderia ser superada sem grandes dificuldades caso houvesse mais recursos externos e internos. Para alguns, a vulnerabilidade é profunda o suficiente para que apenas um imprevisto os leve a experimentar os riscos citados acima. Para muitos, a morte cerceia sua vida de tal forma que basta uma pequena mudança para ceifá-la de vez. Ou, como no caso de João Pedro, basta viver em certo lugar, para que a morte atravessa sua porta e o atinja.

Tudo isso encontra algumas correspondências interessantes com a visão da Bíblia sobre Deus, a criação, a vida e a morte. O espectro entre situações que limitam o pleno desenvolvimento humano até situações de risco de morte poderia mudar para uma linguagem mais bíblica: vida, de um lado, e morte do outro. Deus é um Deus de vida, que cria um ambiente que gera e sustenta a vida, enquanto a ausência de Deus e suas ações criam um ambiente incapaz de gerar e sustentar a vida, portanto, um lugar de morte. Isso fica bem claro em Gênesis 1, que começa com um estado de vazio e deformidade, ou seja, um ambiente sem vida, descrito pela expressão hebraica תֹהוּ וָבֹהוּ (tohu vabohu), e é concluída com um estado vibrante com vida por todo lado.

O estado de morte, na Bíblia, não é necessariamente uma condição após o ser vivente dar seu último suspiro. Na verdade, é possível viver em estado de morte. Uma palavra importante no Antigo Testamento para o lugar de morte é שְׁאוֹל (sheol). Vejam Salmos 30.3: “Oh, SENHOR, você fez subir minha vida do Sheol, me conservou vivo para não descer à cova”. Ou, Salmos 88.3: “Minha vida é repleta de males, meu ser toca no Sheol”. Ou Salmos 116.3: “As armadilhas da morte me cercam, as angústias do Sheol se apoderam de mim”. Essas condições de vida descritas pela presença iminente do Sheol é uma ameaça à vida. O contexto de tais condições, geralmente, é de desordem social, violência e escassez de recursos. A presença do Sheol, portanto, é uma situação de risco e vulnerabilidade social.

Outra palavra hebraica importante aqui é מוֹת /מָוֶת (motmavet). Trata-se do termo comum para morte. No entanto, a morte não é meramente um estado, pois ela tem certa personalidade. Tanto é que  מוֹת (mot) é um termo que se refere a um deus da morte e do submundo nas mitologias do antigo Oriente Próximo. Para entender a morte como personalidade na tradição bíblica, temos um exemplo interessante em Jeremias 9.21: “Pois subiu [obviamente vindo do submundo] a morte [מָוֶת] pelas nossas janelas, entrando em nossas cidades, e arrancou crianças das ruas e jovens da praça”. Esse texto é bastante significativo por dois motivos. O primeiro é que a morte tem caráter ativo. Ela penetra a esfera da vida humana, especificamente a sociedade, a fim de arrancar a vida de pessoas e levá-las para o seu domínio. O segundo é que Jeremias destaca crianças e jovens como aqueles que primeiro são arrancados pela morte. Crianças e jovens, aqui, são um grupo de maior risco e vulnerabilidade social, algo que continua sendo a realidade em nosso contexto, como a morte de João Pedro deixa claro. Mais interessante ainda, é que o texto de Jeremias fala da morte entrando por nossas janelas. Em nosso contexto, a morte que alcança nossas crianças e adolescentes é uma ameaça que, na maioria dos casos, vem de dentro de suas próprias casas. A violência sofrida por crianças e adolescentes brasileiros é, na vasta maioria dos casos, perpetuada por seus familiares e conhecidos, no ambiente do lar. Mesmo quando isso não acontece, como no caso de João Pedro que foi baleado pela polícia militar do Rio de Janeiro, estar em casa não significa ter segurança alguma.

Por outro lado, vamos ver como o Evangelho de João faz uso do termo vida. Um texto muito conhecido é João 10.10: “Eu vim para lhes dar vida, uma vida plena, que satisfaz” (NVT). Essa “vida abundante” e “vida eterna”, no Evangelho de João, está atrelada à revelação de quem Jesus é. O modo de revelação da identidade de Jesus como Filho e Deus encarnado se dá por vários episódios em que Jesus oferece suprimentos materiais em situações da necessidade humana: vinho (2.1-11), água (4.4-42) e pão (6.1-71). Mais interessante é que a oferta de elementos materiais por Jesus é mais do que isso. O próprio Jesus é “a água VIVA”, o “pão da VIDA”. Jesus oferece esses elementos materiais, mas ele mesmo é a dádiva oferecida. Há uma convergência aqui entre a realidade humana, material, física, e a realidade divina, espiritual. A vida é oferecida pelos elementos materiais que saciam as necessidades humanas, ou seja, aquilo que, de fato, sustenta o corpo humano. Mas como essa oferta é feita pela graça de Deus, no serviço de Jesus como a própria dádiva oferecida, esses elementos também resultam em vida abundante. A materialidade deixa de ser mera materialidade diante de quem a oferece como expressão da graça divina na comunhão com aquele que se revela como o próprio Deus. E João nos diz que todos aqueles que desfrutam desses elementos, recebendo a própria dádiva, que é Jesus, recebem o direito de se tornarem filhos de Deus (Jo 1.12). Jesus, a encarnação de Deus, é o Deus que dá vida, mesmo pelo simples ato de saciar as necessidades humanas daqueles que mais precisam.

Milhões de brasileiros, muitos deles crianças e adolescentes, vivem em situação de risco e vulnerabilidade social. Para eles, a morte é uma realidade diária, seja pela violência física e sexual infligida contra eles, ou pela escassez de recursos materiais e recursos internos. A morte quer arrancar suas vidas e o Sheol parece ser o ambiente em que vivem, como na descrição do salmista. Isso acontece quando um de seus conhecidos ou amigos é baleado, como aconteceu com o João Pedro; ou nas marcas de feridas purulentas que muitos carregam por falta de saneamento básico; ou no prato vazio, literalmente, ou de nutrientes, quando só têm miojo para comer; ou no córrego correndo como uma torrente ao lado de seu barraco; ou no soco que sua mãe leva do namorado; ou quando seu pai ou mãe os espancam; ou quando algum familiar ou conhecido os abusa sexualmente; ou quando o patrão atrasa o salário de seus pais; ou quando são deixados com vizinhos, ainda bebês, porque a mãe foi usar droga na rua; ou por ter sido simplesmente abandonado no hospital por sua mãe. Para todos esses, a igreja tem muito a oferecer. Como corpo de Cristo, podemos oferecer os recursos materiais e a proteção física que essas pessoas precisam para suprir suas necessidades, para dar-lhes o que precisam para viver. Mas como corpo de Cristo, devemos fazê-lo num ambiente de real encontro, de real revelação da dádiva divina, o próprio Jesus, que se manifesta nesse ato, nessa oferta, concedendo a essas pessoas a possibilidade de o receberem nesses elementos e terem vida abundante e serem chamados filhos e filhas de Deus.

Conhecimento de Deus

Teologia é a disciplina sobre o conhecimento de Deus. Para a maioria de nós, teologia significa ler, estudar, escrever, ou seja, se dedicar intelectualmente para buscar o conhecimento de Deus. Ainda que esse exercício intelectual tenha seu valor, não parece que no pensamento bíblico o conhecimento de Deus tenha a ver com isso.

O livro de Jeremias, diferente de outros livros proféticos, apresenta muito de seu conteúdo como um tipo de debate com outros profetas, escribas, e a elite sacerdotal de Judá que se encontrava no templo e no palácio de Jerusalém. Na prática, o debate é sobre se haveria salvação ou destruição para Judá e seu povo. De um lado, Jeremias profetiza que a destruição está à porta; do outro lado estão os outros profetas, escribas e sacerdotes, dizendo que Deus os salvaria. Mas no fundo desse debate no livro de Jeremias está uma questão muito profunda: o que é a verdade e como podemos conhecê-la?

Tanto a verdade quanto a falsidade, no decorrer do debate de Jeremias com seus oponentes, é mais do que uma questão de idéias e conceitos, ou seja, a verdade e a falsidade não são meras palavras. Trata-se, de fato, de uma questão sobre a vida verdadeira e a vida falsa. Um bom exemplo disso está na profecia de Jeremias no templo de Jerusalém no capítulo 7. Ele parece estar falando somente a respeito de palavras falsas quando diz: “Não confiem em palavras falsas, dizendo: ‘Templo do Senhor! Templo do Senhor! Este é o templo do Senhor!’” (v. 4 ). Mas vejam o que vem antes e o que vem depois: “Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: Corrijam a sua conduta e as suas ações, e eu os farei habitar neste lugar” (v. 3); “Mas se de fato emendarem os seus caminhos e as suas ações, se de fato praticarem a justiça, cada um com o seu próximo; se não oprimirem o estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramarem sangue inocente neste lugar, nem seguirem outros deuses para o próprio mal de vocês, eu os farei habitar neste lugar, na terra que dei aos pais de vocês, desde os tempos antigos e para sempre” (vv. 5-7). O que parece ter somente a ver com palavras, na verdade, é sobre um modo de vida. A falsidade das palavras é o resultado de uma vida falsa. Mas o que torna essa vida falsa? No versículo 8, Jeremias diz algo muito importante: “Eis que vocês confiam em palavras falsas, que não servem para nada”. O que torna uma vida falsa ou verdadeira é se esta tem algum benefício. Isso parece subjetivo e até pragmático demais, mas não é.

Aqui podemos começar a dar uma resposta para as duas perguntas fundamentais: o que é a verdade e como podemos conhecê-la? Uma parte da primeira resposta é que a verdade é algo que gera benefício. Com essa parte da resposta já sabemos que Jeremias não entende a verdade como uma ideia, uma essência, e sim como algo concreto sobre a vida.

Precisamos cavar um pouco mais para qualificar essa primeira parte da resposta. Na teologia, o conhecimento da verdade e o conhecimento de Deus são interdependentes, quando não são a mesma coisa. O mesmo acontece em Jeremias, mas não se trata de um conhecimento abstrato sobre a essência do ser divino. Trata-se de conhecer o modo de agir de Deus, sua justiça e seus mandamentos. Vejam essa comparação. No capítulo 5, Jeremias diz: “Eles nada sabem. Não conhecem os caminhos do Senhor, não entendem o que a justiça de Deus exige” (v. 4). Já no capítulo 9, temos um indício do que seja conhecer a Deus, seus caminhos, sua justiça e seus mandamentos. Jeremias diz o seguinte: “… me conhecer e saber que eu sou o Senhor e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor” (v. 24).

Assim, uma resposta provisória para nossas duas perguntas ficaria assim: A verdade é aquilo que traz algum benefício e nós a conhecemos atentando, percebendo, reconhecendo o modo de agir justo e misericordioso de Deus. Com esse fundamento, podemos tratar de um texto que compacta nossa discussão até aqui e nos encaminha para mais algumas qualificações fundamentais:

“Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me? declara o Senhor” (Jeremias 22.16).

Essa fala profética de Jeremias está apontando para a vida de Josias, rei de Judá, famoso pela renovação da aliança e observância da lei, conforme aparece em 1Reis 22-23. A profecia de Jeremias aqui é uma exortação ao filho de Josias, Jeoaquim, que rompeu com os caminhos de seu pai, e precedeu a derrota de Judá e a destruição de Jerusalém pelos babilônios.

As três partes desse versículo apontam exatamente para as três partes que venho tentando desenvolver até aqui: a verdade tem a ver com algo que traz algum bem (“tudo corria bem”); o conhecimento da verdade tem a ver com conhecer os caminhos de Deus (“não é isso que significa conhecer-me?”); e esse conhecimento é concreto e prático, e não está no nível das idéias e das essências (“ele defendeu a causa do pobre e do necessitado”). Mas a forma e o contexto dessa profecia vai nos ajudar a chegarmos numa conclusão mais acertada.

Primeiro, um fundamento importante que aparece nessa profecia é o termo “conhecimento” (hebraico, daʿat). Não é nenhum segredo que esse termo, assim como o verbo cognato yādaʿ, quando se refere a pessoas, não é sobre adquirir e processar informações. Conhecer alguém, aqui, significa ter um relacionamento profundo e um compromisso pessoal com o outro. É especialmente esse segundo elemento, o compromisso pessoal, que explica o motivo de o conhecimento de Deus não ter a ver com uma informação sobre sua essência, mas sobre seu modo de agir. Como seres humanos limitados, não temos acesso à essência do divino e nem é isso que Deus nos propõe. Nosso acesso à pessoa de Deus se dá na observação de seu relacionamento com a criação, em seu agir e caminhar. E nosso relacionamento com Deus se dá nessa ação e nesse caminho. É por isso que conhecer a Deus tem a ver com nosso relacionamento com ele. É, também, por isso que conhecê-lo e ter um relacionamento com ele se dá ao seguirmos o seu caminho, num compromisso prático de ações que correspondem ao seu modo de agir.

Segundo, um fundamento importante sobre os caminhos de Deus, ou seja, sobre quem ele é em relação à criação, aparece nesse texto. Na profecia de Jeremias, Josias conheceu a Deus porque ele defendeu a causa do pobre e do necessitado. Se seguirmos a lógica que estamos propondo aqui, então os caminhos de Deus têm a ver com a defesa da causa do pobre e do necessitado. Vejam como essa afirmação é verdadeira: “Cantem ao Senhor! Louvem ao Senhor! Porque ele salvou a vida do pobre das mãos dos malfeitores” (Jr 20.13). Percebam como um relacionamento pessoal com Deus aqui, mesmo no nível da adoração, está fundamentado em suas ações de justiça e misericórdia. Muito do que encontramos nas profecias de Jeremias, em sua disputa com seus oponentes sobre a salvação ou destruição de Judá, tem a ver com o modo como Deus se importa com os pobres e necessitados.

Terceiro, e por último, temos que pensar sobre como a verdade ou o conhecimento de Deus, em Jeremias, é definido por um resultado benéfico, ou seja, algo que gera benefícios. Esse texto de Jeremias 20.13 e o contexto de Jeremias 22.16 irão nos apontar para uma resposta. Temos dois detalhes importantes em Jeremias 20.13. O primeiro é que Deus deve ser louvado por salvar a VIDA do pobre. Então o conhecimento de Deus, e o que é a verdade, devem ter alguma coisa a ver com vida. O segundo é que a vida do pobre estava em risco por causa da ação de certas pessoas chamadas de malfeitoras. Com isso, podemos nos voltar para o contexto de Jeremias 22.16. Como foi dito, trata-se de uma exortação a Jeoaquim, filho de Josias. Se Josias conheceu a Deus por defender a causa do pobre e do necessitado, o que foi que Jeoaquim fez que demonstrou não conhecer a Deus? Jeremias diz o seguinte: “Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos, contrariando o direito! Que faz o seu próximo trabalhar de graça, sem lhe pagar o salário. Ai daquele que diz: ‘Edificarei para mim uma casa bem grande, com aposentos espaçosos.’ Então ele põe janelas na casa, forra as paredes com cedro, e a pinta de vermelho” (Jr 22.13-14).

Do ponto de vista de Jeoaquim, suas ações trazem benefício, não é mesmo? É um resultado bom, para ele, e para alguns poucos a sua volta. Contudo, não somente suas ações não trazem nada de bom para a multidão de pessoas que vivem debaixo de seu reinado, como suas ações são uma ameaça à vida dessas pessoas. O conhecimento de Deus, a verdade, não pode gerar injustiça e morte. O benefício gerado pela verdade pode ser definido como aquilo que é necessário para a vida de todos. O recurso básico para a vida é a água. Por isso, logo no começo do livro de Jeremias, a disputa entre verdade e falsidade, ou entre Deus e os ídolos das outras nações, é estabelecido a partir de uma metáfora envolvendo água: “abandonaram a mim, a fonte de água viva, e cavaram cisternas, cisternas rachadas, que não retêm as águas” (Jr 2.13). De certa forma, portanto, o benefício gerado pela verdade ou pelo conhecimento de Deus, é sobre a vida e o bem-estar de todos. Por isso a ênfase, em Jeremias, na questão da justiça aos pobres e necessitados contra malfeitores, ou opressores, como Jeoaquim, pois tais pessoas colocam a vida dos pobres e necessitados em risco. Em vez de gerar recursos para a vida de todos, gera escassez, insegurança, injustiça e morte.

Assim, podemos pensar porque o conhecimento de Deus está vinculado ao conhecimento da verdade, que está vinculado à justiça aos pobres e necessitados. A verdade tem a ver com como as coisas são, ou seja, com a realidade. Se o que conhecemos de Deus é que ele age com justiça, a fim de que haja vida, então ele deve ter criado a realidade de uma forma que siga essa lógica. É por isso que essa busca por sabedoria, força e riqueza (Jr 9.23), seguindo a lógica humana, causando injustiças que põe em risco a vida dos outros, é considerada por Jeremias como falsidade. Tal modo de viver no mundo não condiz com a realidade. O que condiz com a realidade é defender a causa dos pobres e necessitados, pois o mundo foi criado por aquele que age com “misericórdia, justiça e retidão na terra” (Jr 9.24). É por isso que a verdade, para Jeremias, é aquilo que resulta em algum bem. Esse bem é a vida de todos, especialmente daqueles que têm sua vida ameaçada.

Agora, portanto, podemos responder com mais exatidão as duas perguntas: o que é a verdade e como podemos conhecê-la? A verdade é tudo o que é capaz de gerar vida, especialmente aos que têm suas vidas mais ameaçadas. Podemos conhecer a verdade quando conhecemos a Deus e caminhamos com ele em seu compromisso de misericórdia, justiça e retidão na terra, pois é isso que gera vida. É por isso que Jeremias afirma: “Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me? declara o Senhor”.

Afeto para avida

O desenvolvimento humano vai além de seu aspecto físico. Você sabia que somos os únicos seres que necessitam da afetividade para sobrevivência? Sim, para sobrevivência! Se um bebê tem todas as suas necessidades fisiológicas, como higiene e alimentação, supridas, mas sem uma relação mínimia de afeto e interação humana, ele poderá morrer. Nosso desenvolvimento humano, o que definirá nossa sobrevivência ou não, depende de relações afetivas. Uma criança que não é tocada, acariciada, que não é olhada nos olhos, ou a quem palavras carinhosas não são direcionadas, não se desenvolverá plenamente.

Essa relação entre afeto e desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social tem sido amplamente pesquisada nos últimos 60 anos. O que se sabe, certamente, é que a privação de relações afetivas e seguras, principalmente na primeira infância, acarretará em danos permanentes. Um dos pontos de grande discussão nessa área é o impacto desses danos para a sociedade. O impacto social de indivíduos que cresceram privados de relações afetivas seguras tem a ver com educação, saúde, economia e até segurança pública.

Podemos perceber, por exemplo, a atenção que empresas têm com a capacidade emocional de seus candidatos. Sendo a capacidade emocional intrínseca a cada ser humano, as questões técnicas podem ser aprendidas. Contudo, danos causados no âmbito emocional são questões dificilmente alteradas na vida adulta, o que pode afetar diretamente o ambiente de trabalho e torná-lo mais ou menos colaborativo e produtivo. Portanto, a vida afetiva e seu impacto se torna cada vez mais importante e real no mundo em que vivemos.

Essa é uma realidade universal que afeta cada um de nós, como seres humanos. Da mesma forma, a privação e a negligência de relações afetivas seguras pode estar presente em qualquer contexto. Tal negligência, portanto, pode acontecer no âmbito de uma família que atenda muito bem as questões materiais de um bebê. Para esses casos, nosso alcance quanto sociedade e governo é limitado e quase impossível de enxergar e pontuar em tempo real. Existe, porém outra realidade social que, sim, está ao nosso alcance. Existem milhares de crianças que não somente são privadas de relações afetivas seguras, mas se encontram em situação de vulnerabilidade e negligência extrema, assim como sofrem com maus tratos. Essas crianças são normalmente encaminhadas para serviços de acolhimento institucional, como medida protetiva de seus direitos e de sua integridade física. Contudo, tal medida protetiva não supre adequadamente as necessidades afetivas dessas crianças.

Aqui não está sendo tratado a qualidade do acolhimento institucional, mas do formato dele e uma consequência de efeito colateral. No acolhimento institucional não é possível o atendimento afetivo personalizado de cada criança.

A legislação brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), contém artigos que garantem o direito da criança e do adolescente viverem em família. Sendo assim, além do serviço de acolhimento institucional, que apesar de adverso em alguns aspectos e ainda necessário, existe também a modalidade de acolhimento familiar, que é apontado como preferencial. Nessa modalidade, o atendimento à criança é feito de forma personalizada e integral por uma família. O acolhimento familiar é um trabalho social ao alcance de qualquer pessoa e família. É uma oportunidade real de atuação cidadã aonde a família abre, além de sua casa, o coração para acolher temporariamente uma criança, até que ela retorne a sua família de origem ou substituta. Ao se abrir dessa forma, a família cria oportunidades para potencializar um futuro diferente para a vida da criança. Essa experiência pode, de fato, moldar um adulto diferente numa sociedade tão carente de reais valores proporcionados pelo afeto.

Semeando amor poderemos colher um mundo com mais amor. Podemos contribuir para a formação de pessoas com suas questões afetivas e emocionais preservadas, desenvolvendo competências básicas para uma vida saudável, para um caminhar mais seguro e com autonomia. É bom que se frise que o amor e o cuidado são aprendidos e vitais à vida humana. Portanto, ensinemos isso no caminhar, doando na prática do dia a dia. Amor é a única coisa que cresce quando se doa.

Seja um agente de transformação de vidas!

Seja uma família acolhedora!

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Religião pura: Tiago 1.27

Com muita razão, a maioria de nós teme nos contaminarmos. Em circunstâncias como a que vivemos atualmente, nosso senso de que há perigos invisíveis se amplifica. Ainda que nós não estejamos acostumados com esse tipo de perigo num âmbito global, a história da humanidade é marcada por doenças contagiosas que ameaçavam a existência de comunidades, pequenas e grandes. É essa ameaça à vida que deu a esses inimigos invisíveis, mas muitas vezes com sintomas bem visíveis, o potencial de adentrar o imaginário e o vocabulário religioso. Contaminação, doenças e impurezas, como ameaça à vida de indivíduos e de comunidades, ganharam um novo significado. Para nós, cristãos, somos levados a pensar no livro de Levítico e todas as suas orientações sobre contaminação e impurezas. No antigo Israel, esse conceito de contaminação e impureza abrangia tanto questões de saúde, como doenças e fluxos corporais, quanto questões físicas e morais. Por exemplo, animais podiam ser considerados “puros” ou “impuros”, e o comportamento das pessoas podia gerar impureza e causar contaminação de objetos sagrados. Infelizmente, essa forma de entender contaminação e impurezas podia ser aplicada para questões étnicas. O Novo Testamento está repleto de polêmicas sobre isso no início do movimento de seguidores de Jesus. Dentre essas polêmicas, a mais notória é a se judeus e gentios podiam ter comunhão sem se preocupar com a contaminação de impurezas? Tiago, que era judeu e cristão, coloca de ponta-cabeça toda essa discussão. Sua forma de entender contaminação e impureza é muito significativa para todos os tempos. Contudo, como nossas sensibilidades ao assunto estão afloradas diante de uma pandemia, a leitura da carta de Tiago é ainda mais significativa hoje.

“Deus, o pai, considera como religião pura e imaculada visitar órfãos e viúvas em suas aflições, mantendo-se incontaminado pelo mundo” (Tiago 1.27).

No primeiro capítulo da carta de Tiago, há uma compilação de ditados de sabedoria. Esse capítulo introduz diversos assuntos que Tiago abordará no decorrer dos próximos 4 capítulos de sua carta. Ao concluir o primeiro capítulo com o versículo 27, Tiago converge tudo o que veio antes, e o que virá depois, nessa breve afirmação sobre “a religião”. Portanto, temos neste versículo o resumo de toda a carta e da teologia de Tiago. Como um bom sábio judeu, Tiago tem uma excelente capacidade de criar provérbios curtos em conteúdo e densos em significado.

O ponto de partida de Tiago é Deus, mas não como um conceito, e sim como uma pessoa de identidade específica: o pai. O fundamento dessa identidade, pelo que é possível observar na carta de Tiago, é que Deus é um generoso doador (ver Tiago 1.5; 4.6). É assim, por exemplo, que a paternidade de Deus é explicada em Tiago 1.17: “Toda dádiva que é boa e perfeita vem do alto, do pai que criou as luzes no céu”. Assim, a paternidade de Deus está em sua disposição de cuidar de toda a criação doando bons presentes a todos. Exatamente por se importar com o bem de toda a criação e de todos, Deus, o pai, tem um cuidado especial por aqueles que, na sociedade, são destituídos de desfrutar dessas boas dádivas divinas na criação. Por isso, tanto na carta de Tiago, quanto em sua fonte teológica proveniente do Antigo Testamento, a paternidade de Deus está vinculada ao modo como Deus cuida de órfãos e viúvas (por exemplo, Oséias 14.3; Salmos 10.14; Salmos 68.5-6). É a paternidade de Deus, que cuida de toda a criação dispensando dádivas a todos e de seu cuidado especial pelos mais vulneráveis da sociedade, que explica uma visão importante de Tiago. Para ele, Deus escolheu os pobres do mundo para serem ricos na fé e serem herdeiros do reino que Deus prometeu aos que o amam (ver Tiago 2.5). Assim, vemos que órfãos e viúvas representam o conjunto de pessoas e grupos sociais em situação de grande vulnerabilidade e necessidade.

Tendo esse ponto de partida, podemos entender todas as outras questões do versículo: a definição da religião pura e imaculada para Deus, assim como o contraste entre Deus e a religião pura e imaculada de um lado, e o mundo do outro. Vamos começar por esse último: o mundo.

Para Tiago, o mundo não é a criação ou o lugar onde as pessoas vivem. O mundo é uma realidade em oposição a Deus. Portanto, se Deus é um pai generoso que cuida de toda a criação, especialmente os mais vulneráveis e necessitados, dispensando boas dádivas, o que seria o mundo? Em primeiro lugar, o mundo deve ser um lugar marcado pela avareza e não pela generosidade. Em segundo lugar, o mundo deve ser um lugar marcado pelo egoísmo e não pela preocupação com o todo. Em terceiro lugar, o mundo deve ser um lugar de auto-exaltação, privilégios, status e desprezo pelos mais vulneráveis. De certa forma, Tiago estabelece as características do mundo a partir do estilo de vida dos ricos afluentes. De acordo com Tiago, os ricos vivem de acordo com a sabedoria “terrena, animal e demoníaca” (Tiago 3.15), baseada em “inveja amarga e preocupações egoísticas” que levam ao orgulho (Tiago 3.14). Essa realidade do mundo, vivida por esse tipo de ricos e poderosos, é uma ameaça à vida dos mais vulneráveis. Em seus projetos avarentos e egoístas, esses ricos oprimem, condenam e até matam os pobres (ver Tiago 2.6-7; 5.1-6).

O contraste entre Deus e o mundo, como já pode ser implicado do parágrafo acima, tem um contorno personificado em Tiago. Deus tem o caráter de pai e está associado aos mais vulneráveis, enquanto o mundo tem um caráter violento associado aos ricos. Esse contorno ganha uma clareza maior quando Tiago fala sobre como as pessoas podem viver de uma forma a serem “amigos de Deus” ou “amigos do mundo”. Como é dito em Tiago 4.4, ser amigo do mundo significa estar em inimizade com Deus. Essa é uma conclusão óbvia, já que Deus e o mundo estão em oposição. Mas podemos considerar duas questões importantes aqui. Primeiro, a amizade com o mundo é inimizade com Deus, porque aqueles que vivem dessa forma desconsideram a Deus e se tornam deuses para si mesmos. Aquele famoso trecho de Tiago sobre pessoas que planejam suas viagens de negócios e bons lucros, sem considerar a vontade de Deus, é exatamente sobre isso (ver Tiago 4.13-17). Segundo, como Deus se vincula aos mais vulneráveis, qualquer ação feita contra eles se torna uma ação de inimizade a Deus. Assim, aqueles que desprezam e abusam dos vulneráveis, ao fazê-lo, demonstram que desprezam ao próprio Deus e se colocam em inimizade com ele. Dessa forma, o modo como nos relacionamos com os mais vulneráveis da sociedade é o teste decisivo para sabermos se somos amigos de Deus ou amigos do mundo.

O que, então, seria ser amigo de Deus? Aqui já podemos considerar de forma mais direta o nosso versículo, Tiago 1.27. De forma objetiva, amizade com Deus tem a ver com confiar na identidade de Deus como um pai generoso, que cuida de toda a criação, portanto, tem um cuidado especial para com os mais vulneráveis e necessitados. Tal confiança, em Tiago, é sempre ativa e nunca intelectual ou mental. Por isso, confiar nessa identidade de Deus significa viver uma vida em conformidade com essa identidade. Assim, a chave de nosso versículo está na atividade de “visitar órfãos e viúvas em suas aflições”. Como veremos agora, essa prescrição de Tiago é a chave que abrirá todo o significado de nosso versículo, assim como toda a teologia da carta de Tiago.

Quando Tiago fala em visitar, ele não está falando de uma passadinha na casa de uma pessoa para um breve período de interação. A atividade esperada é ir ao encontro de alguém com o intuito de cuidar dela, permanecendo ao seu lado, se identificando com o seu problema, e fazendo algo que traga uma solução para sua situação. Tudo isso fica muito claro quando Tiago fala em “aflições”. É uma visita em que entramos na vida do outro e tornamos o problema dela o nosso próprio problema. Não é à toa que esse tipo de visita é a forma como a vinda encarnada de Deus, em Jesus, é imaginada. Zacarias, pai de João Batista, ao se encher do Espírito Santo, diz a respeito do que estava por vir: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo” (Lucas 1.68).

Visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições, portanto, nos estabelece como amigos de Deus a partir de duas características. Como já vimos, Deus, para Tiago, é um pai generoso especialmente compromissado com o bem daquelas pessoas mais vulneráveis e necessitadas. Ao visitarmos essas pessoas, estamos fazendo aquilo que o próprio Deus faz, daí a nossa identidade como amigos de Deus. Por outro lado, ao visitarmos os órfãos e as viúvas, estamos nos identificando com eles e tomando para nós suas aflições. Tornamo-nos, portanto, humildes e dependentes da “visita” de Deus, de sua graça e generosidade. Dessa maneira, como Deus tem um compromisso especial com as pessoas mais vulneráveis e necessitadas, nós nos tornamos alvos desse compromisso especial de Deus, portanto, somos considerados amigos de Deus.

É nessa tensão entre amizade com Deus e amizade com o mundo que podemos, então, entender a tensão entre pureza e impureza estabelecida por Tiago. Tanto no Antigo Testamento, quanto no judaísmo antigo, pureza e impureza tinham aspectos rituais, mas também aspectos morais. Mesmo mantendo o caráter moral da observância ritual, o judaísmo antigo via na tensão entre pureza e impureza um requisito para certos comportamentos exclusivos, ou seja, de segregação. O aspecto mais conhecido e notório disso, que conhecemos pelo Novo Testamento, era a proibição da comunhão de mesa entre judeus e gentios. Em outros círculos religiosos, inclusive atuais, em que há uma ênfase na pureza e na impureza, tende-se a criar regras de isolamento e exclusão social, assim como tabus sobre pessoas, lugares e certas atividades. Nessa visão da realidade, o mundo e Deus são associados, literalmente, a certos lugares, pessoas e atividades. Quando Tiago fala de amizade com Deus e amizade com o mundo, assim como pureza e impureza, ele estabelece como critério um aspecto moral da identidade de Deus. Nós nos mantemos puros ao seguirmos a lógica da ação de Deus na criação. Nós nos contaminamos com o mundo ao seguirmos a lógica da ação humana no mundo. A lógica de Deus é o cuidado generoso de um pai para o bem de todos, em especial dos mais vulneráveis. A lógica do mundo é avareza, o egoísmo, a arrogância e a violência, ou seja, aquilo que leva ao benefício próprio em detrimento dos outros, criando ricos afluentes e pobres oprimidos.

O mais interessante da forma como Tiago estabelece a tensão entre pureza e impureza, é como ele cria uma relação de causalidade entre as duas. Para muitos cristãos, a forma de não se contaminar pelo mundo, ou seja, avareza, egoísmo, arrogância, etc., vem por um tipo de santificação, ou purificação, baseada em isolamento, exclusão e exercícios intelectuais e introspectivos de piedade. Tiago é muito “mão na massa” para isso. Para ele, nos mantemos incontaminados pelo mundo ao visitarmos os órfãos e as viúvas em suas aflições. Na teologia de Tiago, a santificação é identificação com Deus, ou seja, amizade com Deus. E tal amizade, como vimos, passa pela visita aos vulneráveis e necessitados, inevitavelmente. Isso faz todo o sentido, pois combate-se avareza, egoísmo e arrogância, com práticas de solidariedade, generosidade e humilhação, simples assim.

Por fim, a parte mais importante. Como entender a afirmação de Tiago de que Deus considera isso como religião pura e perfeita? O que Tiago entende por religião são atos de adoração em conformidade com quem Deus é em suas ações na criação. Existe, assim, um teor de entendimento intelectual sobre a identidade de Deus. Contudo, para Tiago, conhecemos a Deus por suas ações, e nosso conhecimento de Deus está, da mesma forma, atrelado a nossas ações. Para Tiago, a religião, a piedade, o credo, a confissão de fé e a teologia aprovados pelo Deus de Jesus Cristo, é visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições.

Essa é uma mensagem extremamente relevante em qualquer circunstância de nossa experiência humana. Mas ela tem um significado muito profundo quando a situação de vulnerabilidade e necessidade de milhões de pessoas é agravada pela contaminação de um vírus. Se Tiago está certo em sua teologia, e temos muitas razões para acreditarmos que ele esteja, então esse é um momento crucial para a religião cristã. Seremos marcados pela amizade com o mundo? Tomaremos decisões avarentas, egoístas e arrogantes nos deixando contaminar pelo mundo, mesmo que sejam decisões com aparente piedade? Ou seremos marcados pela amizade com Deus? Tomaremos decisões baseadas numa generosidade parental para o bem de todos, especialmente dos mais vulneráveis e necessitados, nos tornando humildes e dependentes da graça e generosidade de Deus? A grande pergunta que todo cristão deve responder nesse momento é a seguinte: minha religião me leva a visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições?

Conheça-nos: Família Jikal

Gerson e Chelly são missionários que ingressaram na ABBA em novembro de
2019.  Há muito tempo Deus havia colocado
em seus corações o amor por missões. Após muita oração, decidiram que era hora
de compartilhar o seu novo desafio: viver integralmente para amar e ajudar
crianças e adolescentes que vivem em situação de risco e vulnerabilidade social
na cidade de São Paulo.

 

 

Gerson é brasileiro, descendente de sul-coreanos, nascido e crescido em
São Paulo. Chelly é brasileira, também descendente de sul-coreanos, nasceu em
Brasília, mas mudou-se ainda bebê para São Paulo. Casados desde 2010, serviram
integralmente como evangelistas em uma igreja coreana no Bom Retiro. Ali,
lideravam o departamento de missões, e pastoreavam muitas pessoas. Fruto desse
casamento, tiveram três meninas: Julia (7 anos), Luana (5 anos) e Emanuela (2
anos).

 

 

Gerson e Chelly são coordenadores da Casa Elohim, o serviço de
acolhimento institucional da ABBA. Dentre suas diferentes funções, eles servem na
orientação social e espiritual das crianças e adolescentes, assim como de todos
os funcionários envolvidos nesse serviço. Apesar de suas funções contemplarem
atividades administrativas frente o convênio com a prefeitura, o principal
papel que desempenham é avançar sua mais importante missão: cuidar da vida
espiritual da Casa Elohim, para que a essência missionária e o evangelho continuem
sendo o centro e alvo de todo o serviço.

Gerson gosta de ler livros, pregar e ensinar a Palavra. Gosta muito de
assistir filmes com a esposa e considera-se fascinado/apaixonado pelo incrível
mundo de Nárnia.

Chelly tem sido mãe em quase 100% de seu tempo. Considera o seu maior e
melhor ministério. Gosta muito de cozinhar.

 

 

Julia é a perfeita filha mais velha. Responsável e ajudadora, vive
dizendo que não aguenta mais cuidar das irmãs, mas mesmo assim sempre pede por
mais um bebê em casa. Quando ganha um pacote de bala, come de pouco em pouco,
durante vários dias.

 

 

Luana é corajosa e destemida. Assim como o pai, ela adora bichos e animais. Quando ganha um pacote de bala, come tudo de uma vez só e larga o pacote vazio por aí.

 

 

Emanuela é independente, bagunceira, vive cantarolando e come tudo o que vê pela frente. Quando ganha um pacote de bala, come o dela, o da Luana e no dia seguinte vai pedir mais pra Julia!

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